Siga a folha

Descrição de chapéu

Sobre amar Drew Brees, e a decisão por não cancelá-lo

Torcedores do New Orleans Saints conviveram entre a idolatria e o amargor com as posições políticas do quarterback

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Talmon Joseph Smith
The New York Times

Drew Brees, quarterback do New Orleans Saints, anunciou sua aposentadoria no domingo (14), em uma mensagem familiar postada no Instagram no 15º aniversário da assinatura de seu contrato com a equipe da NFL. A notícia representa o fim da carreira do melhor jogador a vestir a camisa do Saints, e de um capítulo importante na cultura esportiva de Nova Orleans, que gira apaixonadamente em torno dos altos e baixos da equipe.

Brees se aposentou tendo vencido um Super Bowl, como líder da NFL em total de jardas de passe (com 80.358), e como candidato garantido ao Hall da Fama –ele foi o único quarterback a conseguir cinco mil jardas de passe por temporada em cinco temporadas diferentes. Mas as despedidas emotivas que surgiram na mídia social, de torcedores do Saints e antigos colegas de equipe do jogador, enfatizam muito mais as qualidades pessoais de Brees do que as estatísticas de sua carreira.

O recebedor Michael Thomas, o alvo preferencial dos passes de Brees na última meia década, o descreveu como “a definição de um líder”, em uma declaração longa e emotiva. “Você é um herói, para mim e para muitas outras pessoas", escreveu Thomas. Ele concluiu afirmando que “você é um ícone em todo o mundo, mas é meu irmão a cada dia. Amo você e aprecio tudo que fez”.

Drew Brees, quarterback do New Orleans Saints, em lançamento durante partida contra o Minnesota Vikings - Chuck Cook - 25.dez.2020/USA TODAY Sports

Foi uma reviravolta para Thomas, que, a despeito de seu relacionamento muito próximo com Brees, ou talvez por causa dele, criticou o quarterback por comentários que ele fez depois que a polícia matou George Floyd, um homem negro, em maio de 2020. Em junho, Brees disse a um entrevistador que, embora apoiasse a justiça social, se oporia a qualquer protesto na NFL que envolvesse os jogadores se ajoelharem durante a execução do hino nacional antes dos jogos.

“Jamais vou aceitar que alguém desrespeite a bandeira dos Estados Unidos ou o nosso país”, ele disse, em uma declaração que reiterava a posição que adotou em 2016, quando diversos jogadores da liga aderiram ao protesto de Colin Kaepernick, que passou a se ajoelhar durante a execução do hino nacional.

Em 2020, Brees primeiro esclareceu e depois retirou seu comentário, em parte por conta da reação adversa de colegas de equipe como Thomas, que postou sua resposta no Twitter: “Ele não sabe do que está falando”.

Eu nasci e me criei em Nova Orleans, sou jovem e negro, e sou torcedor furioso do Saints, e, ao mesmo tempo em que sinto uma imensa alegria diante da carreira de Brees, compreendo a ambivalência de muitos dos torcedores mais progressistas com relação ao seu conservadorismo.

Alguns deles, entre os quais amigos próximos que participam de um grupo de torcedores do Saints, jamais aceitaram como sincera a retratação de Brees na temporada passada, quando ele realizou uma espécie de jornada virtual de aprendizado e aderiu ao esforço generalizado da organização para abraçar a causa da justiça social, e doou dinheiro pessoalmente a esforços relacionados. Um par desses torcedores definiu a atitude de Brees como uma “turnê da redenção”, com ironia desdenhosa.

Mas a retratação satisfez Thomas, que, em uma mensagem posterior no Twitter declarou, sobre Brees, que “ele se desculpou, e aceito suas desculpas, porque é isso que fomos ensinados a fazer como cristãos. Agora de volta ao movimento! #GeorgeFloyd”.

Uma massa crítica dos torcedores que se sentiram insatisfeitos com o comentário de Brees sobre a bandeira parece ter desenvolvido sentimentos semelhantes aos de Thomas –imaginando se não deveríamos tratar o homem de maneira graciosa e admitir a possibilidade de crescimento nas outras pessoas quando elas são chamadas a reconsiderar seus tabus.

Afinal, especialmente para aqueles de nós que cresceram no velho sul dos Estados Unidos, a lista de amigos e parentes que mudaram muito lentamente de ideia sobre questões sociais seminais –segregação, casamento inter-racial, casamento homossexual, direitos da mulher e muito mais–, e só o fizeram depois que que os costumes da sociedade se liberalizaram, costuma ser bastante longa. Pessoas são capazes de evoluir. Também é verdade que é muito mais provável que essa evolução aconteça quando a sociedade ameaça deixá-las para trás.

Determinar se nós –ou Thomas e os demais colegas de time do quarterback– estaríamos tão dispostos a perdoar caso Brees não estivesse jogando excepcionalmente bem a despeito de sua idade é uma questão hipotética que jamais poderá ser testada. Mas existe uma conexão mais inefável para com a cidade que Brees com certeza conquistou, e essa conexão criou um reservatório de boa vontade profundo o bastante para pôr fim a qualquer ameaça à maneira pela qual ele será lembrado. Estou falando da conexão entre a volta de Brees à sua melhor forma e a batalha de Nova Orleans para renascer.

Como todo programa de televisão que recapitulará sua carreira com certeza vai mostrar, quando Brees chegou ao nosso sofrido time (que costuma ser chamado de ‘Aints [os sem nada]), ele era visto como um jogador baleado, depois de romper um músculo do ombro no braço com que faz seus arremessos.

A devastação causada pelo furacão Katrina apenas alguns meses antes da chegada de Brees a Nova Orleans havia causado feridas profundas à velha cidade fluvial, cuja recuperação muita gente considerava improvável, e contra a qual muita gente parecia torcer. Em resumo, todas as partes envolvidas –Brees, os torcedores que estavam reconstruindo suas casas e o time fracassado que mesmo assim decidiu que não deixaria a cidade– estavam por baixo, mas decidiram que apostariam uns nos outros.

Drew Brees com o troféu do Super Bowl de 2010, conquistado pelo New Orleans Saints - Jeff Haynes - 7.fev.2010/Reuters

Mais tarde, quando todas essas partes foram recompensadas com temporadas vitoriosas no futebol americano, um título e jogos transmitidos em rede nacional –o que representava ainda mais uma desculpa para festa em uma cidade que ama festas acima de tudo–, surgiu um elo defensivo natural.

“Vocês me disseram que, se eu amasse Nova Orleans, o amor seria retribuído”, diz a carta aberta de despedida de Brees. “E essa é uma grande verdade”. Talvez nossas lembranças compartilhadas, criadas em torno da mesa nos jantares de festas ou nas visitas ao Superdome nos domingos (em companhia de pessoas igualmente complicadas) sejam o motivo para que tratemos Brees e outros com mais simpatia do que talvez devesse ser o caso.

No momento de minha maior frustração com Brees, em 2016, lembro-me de perguntar para minha mãe, que lutou pelo fim da segregação em sua escola primária em Nova Orleans, e foi alvo de protestos de brancos por isso, se era aceitável que eu, ela e nossa família continuássemos a torcer por Brees durante os jogos, e continuássemos a comprar carnês de ingressos para toda a temporada, em um momento em que ele estava sendo insensível para com as queixas que nossa comunidade tinha fora de campo.

“Tal”, ela me disse, com um sorriso melancólico e uma ponta de resignação, “tenho certeza de que, se eu conversasse com Drew, lhe diria que o aprecio como um bom quarterback e um líder na cidade, mas que acho que ele está muito, muito errado sobre isso e aquilo. E tenho certeza de que ele responderia dizendo que agradece muito o meu apoio e que, mesmo que não concordemos sobre todas as questões, ele ama a cidade e ama o Saints, e espera dar motivos de orgulho aos torcedores”.

Foi uma lição sobre como empatia e compartimentação podem coexistir, ainda que com dificuldade; sobre como a condição de torcedor, para muitos, não depende estritamente de aceitar a posição política do atleta por quem você torça. Mas, dada a sensação crescente de que há coisas demais em jogo para permitir tréguas desse tipo, a situação agora pode estar mudando.

Fui apresentado a Brees pouco depois de ele levar o time à sua primeira final da conferência NFC, em janeiro de 2007. Ele tinha mais ou menos a idade que tenho agora, e estava visitando o pedregoso jardim da Lusher Charter School, uma área hoje conhecida como Brees Family Field. Não me lembro de ter me preocupado muito com a posição política dele, ou de que as demais pessoas de minha comunidade, muito ativas em termos cívicos, tivessem se incomodado com isso, tampouco.

Quando penso sobre Drew Brees hoje, não penso nele como pessoa; em lugar disso, recordo os muitos abraços, “high fives”, beijos, pretextos para conversa, festas de final de semana, memórias indeléveis e momentos de orgulho para minha cidade pelos quais ele foi responsável.

Não existe uma equação conveniente que possa calcular o equilíbrio entre essas realidades doces e o amargor de suas posições políticas antes de 2021, e que nos ofereça uma resposta sobre como deveríamos nos sentir. Talvez seja melhor assim. Talvez isso signifique que somos todos humanos

Tradução de Paulo Migliacci

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas