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Artes Cênicas

Tchekhov é insuspeitado antídoto para a distopia dos tempos atuais

Com sutil elegância, o autor desconfiaria das mistificações filhas do horror e da vulgaridade se estivesse vivo agora

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Rodrigo Alves do Nascimento

Doutor em literatura e cultura russa pela USP, é professor e crítico teatral do site Cena Aberta. Autor de 'Tchékhov e os Palcos Brasileiros' (Perspectiva, 2018)

QUATRO PEÇAS

Avaliação:
  • Preço: R$ 54,90 (368 págs.)
  • Autor: Anton Tchékhov
  • Editora: Cia das Letras - Penguin Companhia
  • Tradução: Rubens Figueiredo

O teatro com frequência atualiza no palco peças que parecem distantes de nós no tempo e no espaço. Se há dramaturgos cujos trabalhos tornam mais difícil a empreitada, este não parece ser o caso de Anton Tchekhov.

Considerado um dos maiores autores da virada do século 19 para o 20, ele é parte importante da onda de renovação da narrativa curta e do drama moderno, mas não somente isso: deu forma a questões que ainda hoje reverberam de maneira contundente entre nós.

O constante interesse pela publicação e pela montagem de suas peças dá indícios desse fato. Há a nova tradução de Rubens Figueiredo das quatro grandes peças de Tchekhov, publicada há poucas semanas pela Companhia das Letras/Penguin, para não falar da recente montagem em vídeo-teatro de "Gaivota", de Bete Coelho e Gabriel Fernandes, da última montagem em São Paulo de "O Jardim das Cerejeiras", pelo Grupo TAPA, e de "A Semente da Romã", da Cia da Memória, inspirada no universo de Tchekhov e que se passa nos bastidores do último dia de apresentação de “As Três Irmãs”. Some-se a isso a montagem de O Jardim das Cerejeiras, do português Tiago Rodrigues, que abriu o Festival de Avignon deste ano —um dos principais eventos das artes cênicas europeias.

Mais do que outros dramaturgos, Tchekhov parece apresentar um insuspeitado antídoto para a distopia dos tempos atuais.

Ele absorve a complexidade de um momento de estagnação autoritária, que parece ser semelhante ao nosso. Não à toa, o “compasso de espera” e o “desejo de vida” que marcam simultaneamente o discurso de boa parte das personagens de "As Três Irmãs" foi filtrado por José Celso Martinez Corrêa em uma polêmica montagem no Oficina, em 1972, no auge da ditadura civil-militar.

O diretor produziu entre as personagens e parte da intelectualidade de esquerda dos anos 70, sobretudo aquela que não seguiu na militância clandestina, morta, torturada ou exilada, um curioso paralelo: eram vítimas autocomplacentes do sufocamento social. Incapaz de agir —como as protagonistas que nunca retornam a Moscou—, parte da nossa esquerda acumulava forças para os “bons tempos” que não vinham.

O escritor e médico russo Anton Tchekhov em Moscou, em 1897 - Alieksandr Tchekhov/Reprodução

Mas Tchekhov não era afeito a julgamentos tão duros. Não à toa, era pouco simpático às peças de Henrik Ibsen, praticamente seu contemporâneo. As intrigas bem-feitas e o desvelamento contundente da hipocrisia pequeno-burguesa, tão marcantes nos textos do norueguês, lhe soavam artificiais e pouco verdadeiras –daí seu interesse por uma dramaturgia elusiva, cujos sentidos foram vivamente disputados ao longo do século.

Em vez de um “tapa na cara” da sociedade ou do questionamento das ideologias, interessava situar as personagens e os problemas em contexto —talvez venha disso a sensação de que em suas peças há uma multiplicidade difusa de discursos e tempos.

E talvez venha daí a preferência pelas personagens decaídas e deslocadas no tempo (vistas por muito encenadores como melancólicas e trágicas –o que irritava Tchekhov profundamente), bem como pelos discursos em descompasso com as ações, provavelmente porque revelam melhor as contradições entre as imagens de si e os mecanismos silenciosos e cotidianos que as fabricam.

Em peças como "A Gaivota" ou em "Tio Vânia", as personagens estão em constante processo de “tornar-se”. São captadas em momentos nada gloriosos, nos quais todo um modo de vida ou todo um edifício de automistificação se revela frágil.

O “máximo efeito”, como queria Tchekhov, não tende a vir, portanto, de um desfecho impactante ou de um discurso poderoso. Pelo contrário: vem da vida ordinária, das crises mudas, dos episódios de bastidor que reverberam indiretamente. Em "A Gaivota", o suicídio de Trepliov se dá fora do palco... em "O Jardim das Cerejeiras", o leilão de venda da propriedade ocorre longe do que vemos em cena...

É como se Tchekhov lutasse contra todo o modo de representação melodramático, recheado que é de arroubos emocionais e de saídas falseadoras. Não à toa, Gilda de Mello e Souza considerava suas peças, com seus enquadramentos a um só tempo ternos e irônicos, trágicos e cômicos, uma verdadeira escola de sensibilidade para jovens atores e atrizes com ambição grandiloquente.

Por trás dessa reeducação do olhar parece haver uma forte proposta ética: a lente objetiva e, principalmente, a forma aberta, que não se reduzem a nenhuma opinião prévia, são armas contra a História única e revelam profunda empatia pelo outro –no sentido forte da palavra.

Nos tempos atuais, em que a violência e a aniquilação são políticas de Estado, o antídoto tchekhoviano sugere um ligeiro distanciamento. Afinal, os donos do poder não devem definir as ideias de uma época e nem impor essa condição melancólica e desesperançada. Tchekhov, com sua sutil elegância, desconfiaria das mistificações que são filhas do horror e da vulgaridade. Tudo contornado por aquele meio-riso, como se dissesse: a tragédia não pode ser nosso único fim.

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