Iphan atropela conselho de tombamento e causa temor de controle bolsonarista
Grupo que representa sociedade civil decide sobre patrimônios a serem preservados, empréstimo de obras e outros
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O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional está em crise. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro já afirmou ter demitido diretores do Iphan depois que a instituição paralisou obras do empresário Luciano Hang, seu apoiador, uma série de medidas recentes fazem da instituição um órgão-fantoche de bolsonaristas.
Agora, documentos aos quais a Folha teve acesso mostram que a direção do Iphan tem tomado decisões sem a aprovação de seu conselho consultivo —sua instância máxima—, enquanto, paralelamente, trabalha na recomposição de seus membros.
Conselheiros e especialistas temem que o grupo seja aparelhado por pessoas alinhadas ao governo Bolsonaro, como aconteceu com outras áreas do instituto.
O Iphan foi procurado por uma semana antes da publicação da reportagem para saber se haveria a troca de conselheiros e por que a consulta foi feita. A instituição não respondeu aos três pedidos de posicionamento mesmo depois de afirmar por email que "tinham interesse" em se pronunciar.
Vinte dias depois da publicação da matéria no site da Folha, a instituição entrou em contato nesta terça (9) e disse que "é falsa a alegação de dissolução conselho consultivo do órgão" e que "as nomeações continuam sendo baseadas de acordo com a legislação (Decreto 9.963/2019), que mantém a composição estrutural do conselho".
A nota não respondeu, no entanto, os questionamentos da reportagem em si sobre a troca de conselheiros e da consulta feita para essa mudança.
O conselho consultivo do Iphan é a instância que, na prática, decide sobre tombamentos e patrimônios a serem preservados. Como mostrou a Folha, sob Bolsonaro, o grupo já viveu uma paralisia histórica.
Por lei, decisões como a de liberação para que obras protegidas viajem para exposições fora do país também devem passar pelo órgão.
No entanto, em pelo menos dois processos aos quais a reportagem teve acesso, a direção do Iphan deliberou sobre esse assunto sem a aprovação dos conselheiros, sob a justificativa de que o grupo está em "processo de recomposição de seus assentos" e que as decisões serão ratificadas após as renomeações.
Um deles é de empréstimos de obras do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, o MAC.
Os dois documentos são datados do mês de junho. Conselheiros e servidores do Iphan ouvidos pela reportagem de maneira reservada se mostraram surpresos uma vez que não houve qualquer tipo de comunicação sobre possíveis impedimentos à atividade do conselho ou sua recomposição —e que, para esse tipo de procedimento, bastaria uma consulta por email aos seus integrantes.
Disseram, no entanto, que já havia o temor de que a direção do instituto trabalhasse nos bastidores para alterar os membros e aparelhar o órgão com pessoas alinhadas ao governo.
O conselho é composto por 23 nomes —a presidência, cinco representantes do poder público, quatro representantes de entidades independentes e 13 profissionais de notório saber que representam a sociedade civil.
A brecha para alteração dos nomes foi aberta após o decreto de Bolsonaro, que, em abril de 2019, extinguiu diversos conselhos federais com participação da sociedade civil, inclusive o do Iphan —que foi reconstituído posteriormente.
Como mostram outros documentos de janeiro deste ano, a presidência do Iphan —por meio do secretário do conselho consultivo— questionou a procuradoria do órgão sobre qual seria a data de término do mandatos desses representantes da sociedade civil.
A brecha está numa portaria do Ministério do Turismo que renomeou o conselho, de 8 de janeiro de 2021, após Bolsonaro extinguir o órgão.
O documento cita, explicitamente, que os membros do poder público e de entidades independentes têm mandato de quatro anos contados a partir daquela data, mas não diz nada sobre o mandato dos membros de notório saber.
"A portaria mencionada foi silente, entretanto, quanto à data a partir da qual contaria o prazo do mandato dos membros de notório saber", alerta o Iphan.
A procuradoria responde, então, que concorda com a visão da secretaria de que, para os representantes da sociedade civil, vale na verdade a data da portaria de nomeação anterior, de 18 de abril de 2018 —essa que cita explicitamente o tempo do mandato dos representantes da sociedade civil.
A portaria de 2021 só "oportunizou novas designações aos representantes das entidades" e os membros de notório saber "encerrarão seu mandato em 20 de abril de 2022", diz a procuradoria.
Na teoria, isso significa que o mandato dos membros da sociedade civil, de notório saber, que constituem a maior fatia do grupo, já se encerraram e pode haver trocas a qualquer momento. E, pela lei, é a presidência do Iphan quem nomeia esses representantes.
A alteração no conselho, apontam pessoas ouvidas de forma reservada, representaria a mais incisiva interferência de um governo no Iphan e consolida um movimento que começou em 2019, de nomear servidores sem experiência na área para cargos de chefia.
Jurema Machado, ex-presidente do Iphan, lembra que a instituição, como qualquer outra, sempre foi e será sujeita a interesses políticos, mas que sua instância máxima sempre foi resguardada.
"Em mais de 80 anos lidando com temas sensíveis, nunca houve questionamentos quanto a atuação do conselho, justamente pelo rigor na escolha de seus membros", diz.
Ela lembra ainda que, pela lei, o ministro superior –no caso, do Turismo– pode decidir não acatar a decisão do conselho. Portanto, prossegue, já há pela lei uma estrutura que compreende, além de aspectos técnicos, também os políticos para a tomada de decisão sobre um patrimônio.
"A interferência introduziria um componente de desconfiança e segurança na instituição. É uma total incompreensão do papel do conselho, porque se o Executivo quiser tomar decisões que sejam políticas, ele que tome e não transfira isso para o conselho", completa.
Foram mais de dez nomeações no governo Bolsonaro até agora, como a da presidente, que fez carreira no setor de turismo e tem vínculo de amizade com a família Bolsonaro e até mesmo a de um bacharel em educação física, atual superintendente da divisão regional de Rondônia, Augusto Celso Figueiredo da Silva.
Desde que assumiu o cargo, Peixoto já trocou os cinco principais diretores do instituto, com destaque para o pastor Tassos Lycurgo, diretor que vem sendo seu principal aliado dentro do órgão.
"A posição desse governo em relação ao patrimônio cultural é de um desmonte sistemático das políticas públicas de preservação consolidadas no país", avalia o arquiteto e professor Marcos Olender, coordenador-adjunto do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro.
"A gente vê com preocupação essa interferência no conselho porque, se eles forem indicar conselheiros, serão pessoas que têm a ver com a posição que eles têm assumido em relação ao patrimônio."
A articulação para mudar os conselheiros acontece num contexto de ruído entre os representantes e a presidência. Em fevereiro, 12 dos conselheiros convocaram a diretoria para uma reunião e listaram ações recentes do órgão que, nas palavras deles, comprometem a preservação do patrimônio, como a diminuição do orçamento do Iphan a partir de 2019, a possível venda do Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, entre outros.
O racha ficou evidente quando a presidente respondeu, em carta assinada junto aos cinco diretores, afirmando que os pontos levantados pelos conselheiros são "desmedidos e desrespeitosos" e pedindo uma retratação por parte daqueles que reclamavam.
O temor agora é que, em sendo feitas as alterações —ainda que a parte do conselho formada por indicações de instituições da sociedade civil não possa mudar—, seria consolidada uma maioria alinhada à atual gestão bolsonarista.
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