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Livros a feira do livro

Odorico Leal revira a antropofagia modernista e satisfaz a nossa fome

Tradutor apresenta na Feira do Livro sua estreia na literatura com os divertidos contos de 'Nostalgias Canibais'

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Stefania Chiarelli

Nostalgias Canibais

Avaliação:
  • Preço: R$ 79,90 (110 págs.)
  • Autoria: Odorico Leal
  • Editora: Âyiné

Em seu livro de estreia, Odorico Leal, reconhecido tradutor e pesquisador piauiense, faz um conjunto de cinco narrativas tendo o Éden como temática e fio condutor.

As delícias de um festim mundano estão presentes na carne humana devorada em "Paraíso Canibal", o poderoso abre-alas do volume. Em dicção que por vezes remete aos textos de antigos cronistas e viajantes, o conto-quase-novela traz em primeira pessoa a história de um indígena com olhos de tupinambá que atravessa séculos, geografias e profissões sem abrir mão do "desejo de mordidas".

Enfeitiçado e tornado imortal por um pajé, mastiga sem culpa amigos e inimigos: "É que a mim sempre apeteceu o sabor mesmo da humana carne, e nunca estive interessado em pastar virtudes, só e somente músculos tenros, tendões indolentes, entre os quais se chega fácil, como por entre cortina de miçangas, ao tutano dos ossos".

Odorico Leal, autor de "Nostalgias Canibais", publicado pela editora Âyiné - Divulgação

Leal, que é convidado da Feira do Livro em São Paulo, se coloca diante de uma discussão sensível hoje, a dos sistemáticos atos de apropriação cultural na cultura brasileira.

No momento em que artistas como Denilson Baniwa recusam o sequestro histórico do saber dos povos originários, servindo com pimenta a cabeça de Mário de Andrade em uma bandeja de palha —como visto na exposição e na tela "Reantropofagia", de 2019—, poderia falhar o gesto de ocupar o lugar de enunciação reivindicado por artistas indígenas.

Filiando-se a uma certa tradição literária modernista, a mesma que bebeu da fonte dos complexos rituais antropofágicos de povos indígenas brasileiros, o escritor é bem-sucedido na empreitada: ao reler esse legado na chave da paródia, encara tal herança artística pelo riso.

No imenso jardim-Brasil de devorados e devoradores, seu protagonista inominado mastiga línguas e corpos metabolizando mais uma vez a diferença. O vigor dessa abertura sacia nossa fome.

Pela presença do estranho e do insólito, "Paraíso Canibal" forma uma espécie de duo com "Os Gatos", em que uma dupla felina divide o apartamento com Andressa, arquiteta falida às vésperas do despejo.

O desfecho atinge o leitor com o nocaute definitivo apregoado pelo mestre Julio Cortázar, concluindo com força uma história em que o elemento paradisíaco aparece no formato de uma poltrona de couro banhada de sol, refúgio de prazer contraposto à medonha realidade brasileira nove andares abaixo.

O antídoto à tentação de "nostalgizar em excesso" (expressão de um dos narradores) emerge na coletânea pela via do humor. Por vezes, a comicidade surge na captura do fato inusitado, em tom de burla; em outros trechos, na capacidade de cada personagem ver a si mesmo pelas lentes do ridículo.

São momentos em que a feiura, a desilusão e o fracasso não estão apenas naqueles que narram suas vidas, mas também em tudo o que há de comezinho e risível em nós.

Como no divertido "O Jardineiro", em que o protagonista, vagando de clique em clique, relata o naufrágio sentimental de um músico frustrado e a namorada editora, "acumuladora social com dezenas de grupos de amigas". Nessas passagens a verve de Leal lembra o talento de Sérgio Sant'Anna ao transitar pela intimidade dos amores miúdos (com direito a ironia).

O Éden particular pode ser a tentativa de regar as plantas sem viço da amada. Murchas as folhas, é flagrante o desânimo do personagem diante do cenário de confronto político na avenida Paulista —em meio a drones, bandeiras de plástico e pulseiras verde-amarelas, medem forças os chamados "Getulinhos" e os patriotas do "Secto do Riso da Morte".

A polarização também se faz presente em "A Febre Dioneia", no duelo de palavras entre uma jornalista e o entrevistado Eduardo Aguardi, engenhosa figuração do artista ressentido; mais um a odiar o país, lugar "impreciso, infernal e safado".

O domínio do ritmo narrativo e a capacidade de elaborar imagens que persistem após a leitura conferem estilo próprio a esse viveiro ficcional. Canibalizando vozes alheias, Leal formula seu texto com personalidade. E sem nostalgia.

Stefania Chiarelli

Professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense, é autora de 'Partilhar a Língua - Leituras do Contemporâneo'

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