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Projeto de Lina Bo Bardi em ruínas terá nova vida como centro cultural em Salvador

Obra da arquiteta do Masp foi abandonada antes da abertura e será retomada por novo time depois de décadas de degradação

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São Paulo

A ladeira da Misericórdia, uma das mais antigas do centro histórico de Salvador, esconde uma obra radical, pouco conhecida e nunca inaugurada da renomada arquiteta Lina Bo Bardi, responsável pelo desenho icônico do Masp, o Museu de Arte de São Paulo.

Desenhado a partir de 1986, o conjunto da ladeira da Misericórdia é composto por três casarões transformados em moradia para baixa renda, com pequenos comércios e serviços no andar térreo a serem tocados pelos moradores.

Também integram o complexo um bar, um belvedere e o restaurante Coatí, ou Coaty, construído em torno de uma mangueira que já existia no lugar e que atravessa o edifício, abrindo sua copa sobre o terraço imerso na paisagem exuberante. Na parte interna, a arquiteta desenhou um palco ao redor do tronco, onde imaginava um dia assistir a uma apresentação de João Gilberto.

Nesta sexta-feira, a prefeitura soteropolitana anunciou a retomada desse projeto em parceria com a Associação Cultural Pivô e com a bênção do Instituto Bardi, fundado em 1990 para preservar o legado do casal Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi.

Uma permissão de uso do espaço por dez anos foi assinada com o Pivô, instituição de compromisso público sem fins lucrativos. Fundado em 2012, o Pivô ocupou e abriu ao público um espaço residual na sobreloja do edifício Copan, de Oscar Niemeyer, transformado em centro interdisciplinar de arte e cultura contemporânea num contexto de intensa degradação daquele trecho do centro histórico de São Paulo.

Vista externa das estruturas cilíndricas do conjunto da ladeira da Memória, projetado por Lina Bo Bardi, com janelas amebóides, semelhantes às do Sesc, em ensaio do artista Mauro Restiffe - Divulgação

Ao longo dos anos e de 150 projetos, entre exposições, programas públicos, publicações e residências artísticas, o Pivô viu seu entorno abandonado dar lugar a uma série de bares e restaurantes e uma livraria, a Megafauna. A ideia é promover movimento semelhante no centro da capital baiana.

"O projeto de Lina para a ladeira da Misericórdia representa o microcosmo de uma estratégia de desenvolvimento sustentável e de reocupação do centro histórico", afirma Pedro Tourinho, secretário de Cultura e Turismo de Salvador.

Entre os parceiros institucionais do Pivô estão a curadora Lissa Carmona, embaixatriz do Instituto Bardi, a editora Fernanda Diamant, sócia da livraria Megafauna e da editora Fósforo, e o gestor Lucas Pessôa, ex-presidente do Instituto Inhotim, em Minas Gerais, e ex-diretor do Masp.

Pessôa, anos atrás, fez uma tentativa de ocupação, cujos estudos geram o ensaio fotográfico do artista Mauro Restiffe que ilustram esta reportagem e agora se juntam à atual retomada.

Talvez nada disso tivesse acontecido se, no ano passado, o Pivô não tivesse inaugurado uma nova sede em Salvador, num casarão histórico, berço da tropicália, e que hoje funciona como uma plataforma pesquisa e intercâmbio artístico.

"O Pivô será a caixa de ferramentas da retomada da ladeira da Misericórdia", afirma Fernanda Brenner, fundadora e diretora artística da instituição. "Ocupar esse espaço é dar continuidade ao DNA da instituição: retomar e abrir espaços arquitetônicos históricos para o público, sempre de forma gratuita, e juntar cultura contemporânea com patrimônio histórico e pensamento artístico."

A experiência como centro de pesquisa e experimentação artística do Pivô reflete o que Brenner chama de "momento invisível de um projeto de arte", quando ocorrem os intercâmbios e pesquisas, o desenvolvimento de processos e as residências artísticas. Esse paradigma, aplicado ao contexto baiano, também será voltado para o fortalecimento de vínculos com a África Ocidental.

Hoje, por entre a mata da encosta da ladeira, sobre as muralhas que remontam à fundação de Salvador como primeira capital do Brasil, em 1549, é possível ver as estruturas cilíndricas de argamassa armada erguidas para abrigar o restaurante e rasgadas por janelas irregulares, semelhantes às do Sesc Pompeia —projeto premiado que a italiana naturalizada brasileira havia recém-concluído. Ali, no entanto, a vista é para a baía de Todos os Santos.

O complexo surgiu como projeto-piloto de um ambicioso modelo de recuperação do centro histórico da capital baiana elaborado por Bardi e pelos arquitetos Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki, com colaboração de João Figueiras Lima, o Lelé, a convite do então prefeito de Salvador, Mário Kertész.

Unia o restauro do patrimônio histórico em escombros a partir de tecnologia industrial à requalificação dos casarões por meio de habitação popular, trabalho e cultura. Concluído em 1990, ainda era construção e já era ruína.

Abandonado de imediato e depredado ao longo de anos, o conjunto da ladeira da Misericórdia conviveu com invasões e pilhagens que sumiram com o mobiliário desenhado e executado pelos arquitetos, e com quase tudo o que poderia ser removido dali.

Ao mesmo tempo, o lugar foi sede do restaurante Zanzibar por alguns anos, depois alvo de projetos e ocupações artísticas que denunciavam a degradação e buscavam evidenciar a relevância do projeto de Bardi, sem conseguir mudar o destino dos espaços.

"É uma experiência que custou dinheiro público e trabalho importante de uma arquiteta hoje reconhecida mundialmente. E nunca mais conseguiram fazer nada ali", diz Ferraz, que prepara um livro de memórias sobre o trabalho ao lado de Bardi previsto para ser lançado ainda neste ano pela editora Martins Fontes.

Desenhos de Lina Bo Bardi para a Ladeira da Misericórdia, em Salvador - Divulgação

O formato de moradia social com comércio deveria ser replicado em 42 quarteirões do centro histórico, segundo o programa original, mas ficou restrito à ladeira da Misericórdia, hoje fechada por grades que impedem a circulação entre Cidade Alta e Cidade Baixa pela via histórica por questões de segurança.

"Foi tão triste que Lina começou a ficar mais doente, mais deprimida. Com o abandono desse projeto, Lina começou a morrer", afirma Ferraz. A arquiteta morreu dois anos depois, em 1992.

A atual retomada de seu projeto joga luz no encontro transformador da arquiteta com o Nordeste do país e seu patrimônio africano por meio da Bahia.

Dividida em dois atos, essa história começa em 1958, quando Bardi chega a Salvador para dar aulas na Universidade Federal da Bahia e estabelece relações com artistas e intelectuais com quem colabora intensamente até o golpe de 1964. Entre eles, estão os antropólogos Pierre Verger e Vivaldo da Costa Lima, o cineasta Glauber Rocha, o escultor Mário Cravo Júnior, o diretor teatral Eros Martim Gonçalves e o pintor Carybé.

"Foi nesses primeiros anos na Bahia que Lina formula uma ideia central em sua vida, a noção de pré-artesanato", afirma o arquiteto Francesco Perrotta-Bosch, biógrafo da arquiteta.

Bardi viajou pelo sertão baiano, onde acompanhou filmagens de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber, e ficou impressionada com utensílios do cotidiano miserável convertidos a partir de objetos normalmente destinados ao lixo —canecas feitas com latas, bules e lamparinas produzidos com embalagens vazias e que exibiam seus logotipos, mas não eram pop art.

"Era uma produção autenticamente brasileira, que não copiava modelos internacionais industriais e que foram ponto de partida de Lina para um projeto de desenvolvimento do Brasil", diz Perrotta-Bosch, que destaca uma troca de cartas da arquiteta com o economista Celso Furtado sobre o assunto.

Os círculos paulistanos de arte e comunicação a conduziram para a direção do Museu de Arte Moderna da Bahia em 1959, enquanto trabalhava no projeto do Masp, numa ponte aérea entre o Hotel da Bahia, seu endereço em Salvador, e a famosa Casa de Vidro do casal Bardi, no Morumbi, em São Paulo.

Dona Lina, como era chamada na Bahia, também projetava o resgate do Solar do Unhão, um complexo industrial do século 17 à beira-mar, para abrigar o Museu de Arte Popular e o que seria o Centro de Estudo e Trabalho Artesanal.

O projeto do solar acabou se firmando como MAM da Bahia, contrariando a proposta de Bardi, numa série de reviravoltas e embates com a elite provinciana de Salvador que culminaram com a saída da arquiteta da cidade. A gota d'água, lembra Perrotta-Bosch, foi uma exposição sobre materiais ditos subversivos imposta ao museu pelo novo governo, já sob ditadura militar. Bardi pediu demissão.

Esse desfecho fez do retorno da arquiteta à Bahia nos anos 1980, ao qual ela resistiu, uma operação de captura e acolhida. Depois de inúmeras recusas dela, o prefeito Kertész e seu secretário de projetos especiais, o antropólogo Roberto Pinho —que havia se deslumbrado em visita ao Sesc Pompeia—, atraíram Bardi a Salvador com uma honraria.

A Comenda Dois de Julho, antes cedida apenas a Gilberto Gil e Dorival Caymmi, foi oferecida a Bardi como um "ato de justiça", em cerimônia no Hotel da Bahia com plateia lotada, cheia de rostos conhecidos da arquiteta, numa aclamação. "Foi o grande prêmio que Lina recebeu em vida", diz o biógrafo.

Emocionada, Bardi foi levada para um giro pelo centro histórico arrasado e se comoveu. Os edifícios pareciam ter sofrido um "terremoto voluntário", disse ela, que associou essa paisagem soteropolitana de ruínas habitadas pelos mais pobres às cidades italianas que viu bombardeadas durante a Segunda Guerra Mundial.

Sob esse impacto, Bardi não conseguiu mais recusar o novo convite para resgatar aqueles espaços.

"O projeto da ladeira está inserido numa intervenção maior em Salvador, com trabalhos feitos por Lina, Suzuki e eu na Casa do Benin, na Casa do Olodum e no Teatro Gregório de Mattos", afirma o arquiteto Ferraz. "A ladeira da Misericórdia é o mais importante desses trabalhos, não só pela sua posição e visibilidade, mas também porque era o piloto de um experimento de intervenção social e no patrimônio histórico."

Bardi desenvolveu as placas de ferro-cimentício pré-fabricadas com Lelé, o arquiteto responsável por obras em outras partes da cidade. Enviou para o colega uma folha de capim-palmeira do quintal de sua Casa de Vidro numa caixa. O desenho plissado das folhas foi convertido no zigue-zague das placas que dão movimento às construções.

A ideia era criar um modelo rápido e econômico de intervenção. A ideia era preservar o que não havia caído, segurando as paredes com contrafortes de concreto pré-fabricados que não escondiam a atualidade do projeto. E garantir habitação de qualidade para a população pobre que mantinha a vida cotidiana num território com potencial para o turismo e sua especulação.

"Queriam mandar os moradores para o subúrbio e colocar gente de outros lugares por lá. Não concordei. Deixei a casa e a lojinha dos moradores na ladeira. Não gostaram", declarou a arquiteta a este jornal em 1991. "Na Itália, por exemplo, estragaram toda a Ligúria com esse negócio de fazer coisas para o turismo", disse ela, para quem essa lógica tornava tudo algo vulgar.

"Seu projeto era evitar que Salvador se convertesse em uma ‘cidade sorvete’, como dizia. Lina estava preocupada com o que via em Roma ou Veneza, onde os moradores estavam sendo jogados para fora das cidades para a chegada de uma classe alta internacional", afirma Perrotta-Bosch, autor de "Lina: Uma Biografia" (Todavia).

A vizinhança da ladeira da Misericórdia hoje abriga hotéis de luxo, como o Fasano e o Fera Palace. Um centro gastronômico, com loja de joias e galeria de arte, restaurou e ocupou o Palacete Tira-Chapéu, enquanto o Palácio Rio Branco, que já hospedou a família real portuguesa, será convertido em uma unidade baiana do hotel de luxo Rosewood, projetado pelo francês Philippe Starck.

Do lado do poder público, um Centro Cultural Banco do Brasil foi anunciado no Palácio da Aclamação, uma escola de música e arte homenageará o maestro Letieres Leite no pé da ladeira da Misericórdia no ano que vem, e programas de moradia popular serão financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, segundo a prefeitura.

"Não é por acaso que o projeto da Lina vai se materializar agora também, destravando uma visão de centro histórico, que é um desafio em todo o mundo, e também um processo terapêutico", avalia Tourinho, o secretário da Cultura.

O contexto atual do centro histórico de Salvador e da ladeira da Misericórdia atualizam um renomado pensamento de Lina. "Na prática não existe o passado. O que existe ainda hoje e não morreu é o presente histórico", dizia a arquiteta. "O que você tem que salvar —aliás, salvar não, preservar— são certas características típicas de um tempo que pertence ainda à humanidade."

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