Siga a folha

Silêncio de Pyongyang é quebrado por marchas e gritos noturnos

Com 3 milhões de habitantes e pouco barulho, capital norte-coreana vive calma aparente

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

[RESUMO] Com 3 milhões de habitantes e pouco barulho, a capital norte-coreana vive uma aparente calma noturna —interrompida por gritos e ruídos de marchas militares no meio da madrugada.

Era o melhor dos mundos: para quem, como eu, não consegue pegar no sono com barulho, nem mesmo o do ar-condicionado, nada como dormir de janela aberta em uma cidade silenciosa.

Mas era o pior dos mundos: a calmaria de Pyongyang é enganosa. Da janela do 34º andar do hotel Yangakkdo, com vista para a duas margens do rio Taedong, de fato não se enxerga ninguém, e só um ou outro carro passa ao longe. Mas silêncio total? Não. Ouvem-se gritos.

Gritos de fervor, de fanatismo. E, junto com esses clamores distantes, chegam ruídos de marchas militares. Não sei o que são ou de onde vêm os sons da madrugada de Pyongyang. Eles não me deixam dormir.

Setembro de 2018. Estou na capital da Coreia do Norte para uma temporada de 11 dias. Uma eternidade para os padrões norte-coreanos de restrições à imprensa. O objetivo é fazer uma série de reportagens para o “Fantástico”, da TV Globo.

Num raro movimento, o governo do líder supremo Kim Jong-un autorizou a entrada de mais de cem jornalistas do mundo todo. Eu, a produtora Stephanie Lotufo e o repórter cinematográfico Wellington Almeida estamos nessa. Foram seis meses negociando com a embaixada. Os vistos saíram em cima da hora.

Sem saber qual será nossa programação, quem vai nos receber ou onde vamos ficar, chegamos no dia 3 de setembro, antes de quase todo mundo. Se nada der errado, sairemos no dia 14, depois de quase todo mundo. Com exceção de uma equipe da agência de notícias Associated Press, que tem escritório em Pyongyang, nenhum estrangeiro passará mais tempo no país do que nós.

Tudo isso para acompanhar as grandes cerimônias pelos 70 anos de fundação da República Democrática Popular da Coreia, nome oficial do país. Ninguém tem certeza de como serão as festas. Sabe-se apenas que haverá um grande desfile civil e militar, como em todos os aniversários.

Fala-se que acontecerão também os Mass Games, os Jogos do Povo, demonstrações colossais de algo parecido com ginástica rítmica, em que painéis humanos gigantes formam mensagens de louvor ao regime. Também espera-se a realização da marcha noturna das tochas, outra marca da ditadura da dinastia Kim.

Enquanto as festas não chegam, circulamos pela cidade ou, mais raramente, por pontos próximos do interior. Nas ruas dos bairros modernos a que temos acesso, faz silêncio.

Silêncio nos restaurantes sempre vazios. Nos parques perfeitos com pouca gente, no rio de correnteza fraca. Do topo do Arco do Triunfo, dez metros mais alto que o de Paris, contemplamos uma cidade silenciosa. Faz um silêncio de mordaça na Pyongyang que conseguimos ver.

Muito se fala do silêncio de Tóquio. De como se escuta um alfinete cair ao chão em Shibuya, naquele enxame louco de seres humanos, o cruzamento mais movimentado do mundo, mas onde não se ouve barulho nenhum.

Nada, porém, se compara aos não sons de Pyongyang. Pouquíssimos ônibus e automóveis circulam por suas avenidas largas (muito mais do que antes de Kim Jong-un assumir o poder, mas, ainda assim, poucos). O metrô, sem trechos de superfície, corre a cem metros de profundidade, precaução contra possíveis ataques nucleares.

A Pyongyang que vemos é a Pyongyang que o governo quer nos mostrar. Nossos deslocamentos acontecem em vans —quando estamos só nós— ou em ônibus lacrados —se também há outros jornalistas estrangeiros.

Quando nos deixam descer à rua, silêncio. Exceções: alto-falantes que, em certos horários, emitem mensagens de incentivo ao trabalho e apoio ao regime. E grupos de meninas com bandeirinhas vermelhas, que passam as manhãs fazendo coreografias nas esquinas, a entoar cânticos de —adivinhe— incentivo ao trabalho e apoio ao regime. São as cheerleaders da ideologia Juche (o “socialismo à moda coreana”).

Faz silêncio até no entorno das grandes festas: da parada civil e militar, dos Mass Games, da grande marcha das tochas. Milhares de pessoas se dirigem a essas celebrações a pé, com poucos sorrisos, sem conversar. Cada qual com um papel determinado: marchar em seu batalhão, segurar um “pixel” no gigantesco painel humano dos jogos, portar uma tocha na grande marcha.

Mas Pyongyang, silenciosa ou não, existe. A capital tem mais de 3 milhões de habitantes. É a vitrine do regime. Lá vive a elite dos escolhidos pelo Partido. As crianças vão à escola. Os trabalhadores embarcam nas estações de mármore do metrô. As lojas onde não permitem filmar têm casas de câmbio ao lado dos caixas. Os privilegiados fazem jogging na pista ao longo do rio. A massa forma filas em frente a portinhas discretas, onde se distribuem cupons de comida. Em silêncio.

Muitas dessas cenas, só vimos à distância, de dentro das vans ou dos ônibus. Não se vai a lugar nenhum sem nossos três “guias”, falantes de espanhol, destacados pelo Comitê de Informações do Ministérios das Relações Exteriores para nos seguir. 

O chefe, senhor Ri, que serviu no Peru, tem bom conhecimento do Brasil e de português, mas nunca nos explica direito como e por quê. O senhor Kim é o menos falante, com espanhol de sotaque cubano, diabético que fuma e arrota bastante e, antes das refeições, levanta a camisa para se aplicar uma injeção preventiva de insulina. E o jovem Cho, o mais sociável e amigável, carregando com desenvoltura o piano das atividades do dia a dia.

No fim das tardes, somos devolvidos ao hotel, que fica numa ilhota do rio e de onde não podemos sair sozinhos. São sete restaurantes, todos com o mesmo cardápio e refeições preparadas numa mesma cozinha central. Há um cassino no subsolo (onde moças das Filipinas e de Macau oferecem “serviço” —nas palavras de um jornalista cubano que apareceu do nada e sumiu sem deixar rastro—, mas nunca descemos para conferir). Existe também um karaokê, uma pista de boliche, livrarias, mercadinho.

Mas quem, como nós, passou 12, 14 horas trabalhando na rua pouco tem tempo para isso. É comer algum prato coreano ou chinês, tomar um ou dois chopes da marca estatal Taedonggang e voltar para o quarto. Assistir a um pouco de Al Jazeera em inglês, liberada para os hóspedes estrangeiros. Abrir a janela, apreciar a vista da cidade escura que parece silenciosa. E tentar dormir, se os gritos deixarem. 


Álvaro Pereira Júnior é repórter da TV Globo.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas