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Livro retrata dilema de judeus alemães que lutaram contra nazistas

Os Ritchie Boys, treinados em segredo pelo Exército dos EUA, são tema de 'Filhos e Soldados', de Bruce Henderson

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São Paulo

Eles fugiram da perseguição na Alemanha nazista antes mesmo do auge do Terceiro Reich. Obtiveram asilo nos EUA e, por caminhos distintos, acabaram se tornando recrutas do Exército americano. Judeus alemães, foram cobiçados como arma de inteligência: falavam a língua e conheciam a cultura e a psicologia do inimigo. 

Destacados dos demais, foram secretamente treinados por três anos no Camp Ritchie, em Maryland, para liderar interrogatórios de prisioneiros de guerra soldados alemães. E voltaram para a Alemanha, desta vez para combater Adolf Hitler ao lado dos americanos.

O livro “Filhos e soldados”, do jornalista americano Bruce Henderson, se detém na história de vida de alguns dos 1.985 mil Ritchie Boys, como eram chamados. O autor obteve relatos em primeira mão de vários deles; extensa pesquisa em arquivos oficiais complementa o relato.

“Há quatro anos, li o obituário de um senhor de 90 anos. O texto dizia como sua família o havia tirado da Alemanha nazista nos anos 1930 antes que ela perecesse no Holocausto e como o menino cresceu na América”, contou Henderson em entrevista por email. 

“Quando a guerra começou, ele se juntou a uma elite do Exército americano chamada de Ritchie Boys e voltou para a Europa ocupada pelo nazismo como um interrogador de prisioneiros alemães.”

“Fiquei impressionado com o escopo dramático de sua história pessoal. Acreditando que isso fosse uma das grandes histórias não contadas da Segunda Guerra, comecei a procurar outros Ritchie Boys’, afirmou.

A história remete à trama do filme "Bastardos Inglórios", de Quentin Tarantino, em que soldados judeus americanos (os bastardos) empreendem uma vingança contra os nazistas. 

Mas ademais do apelo dramático, Henderson pontua o valor histórico dos Ritchie Boys. A Alemanha, bem como outras partes da Europa, vê a emergência de forças de extrema direita que flertam com ideais neonazistas. O aumento do antissemitismo —com diversas origens, e não apenas neonazistas  —  levou Berlim a apontar uma procuradora especial para lidar com os casos.

Recentemente, a chanceler alemã, Angela  Merkel, afcirmou que a Alemanha saberá se de fato aprendeu com o passado depois que geração que viveu a guerra tiver morrido.

“Não apenas o revisionismo histórico é um problema em curso, mas também a amnésia em massa, auxiliada por distrações e desvios. De fato, a ameaça é ainda maior hoje do que foi nos anos 1930, dada a maneira com que somos bombardeados por posts e tuítes que podem ou não ser verdadeiros”, afirmou Henderson.

“Como resultado, as massas estão hoje ainda mais vulneráveis a propagandistas como Hitler e Mussolini – e, ouso dizer, Trump. Precisamos nos manter alertas e informados.”

O escritor e jornalista Bruce Henderson - Sean Marrs/Divulgação

Os Ritchie Boys desembarcaram na Normandia no Dia D, percorreram a França ocupada, lutaram na Batalha das Ardenas e, ao lado das tropas aliadas, estavam entre os primeiros a entrarem nos campos de concentração nazistas —e a testemunharem o que havia sido feito de seu povo.

Não foi um retorno fácil para nenhum deles. Vinham à tona não apenas a perseguição sofrida, mas a nova ameaça de morte pelo fato de serem judeus. Martin Seeling, cuja história é contada no livro, havia ele mesmo estado no campo de concentração de Dachau. 

Kurt Jacobs e Murray Zappler foram executados ao caírem nas mãos de tropas nazistas durante o desembarque. “Judeus não têm direito de viver na Alemanha”, ouviram do comandante nazista antes de serem mortos.

Os Ritchie Boys enfrentavam ainda a desconfiança dos próprios militares americanos, que questionavam seu inglês com forte sotaque alemão. E deparavam com militares alemães que em nada se pareciam com os monstros que deviam odiar e que personificavam o conceito de “banalidade de mal” mais tarde formulado pela filósofa Hannah Arendt.

Em uma passagem, um soldado alemão afirma que se voluntariou para executar judeus porque, se não o fizesse, outra pessoa o faria, e assim ele conseguiria passagens de trem para ir assistir a concertos em Berlim durante a folga.

“Mesmo alguém muito acima na hierarquia nazista, como Adolf Eichmann, um grande arquiteto do Holocausto e de seus campos da morte, não era um louco de carteirinha ou um psicopata. Ao contrário, ele era um homem interesseiro que queria ser promovido e obter status financeiro e social”, diz Henderson. 

“Muitos alemães ‘normais’ perderam de vista o quadro mais amplo e se alinharam, até a derrota e a ocupação de seu país, quando ‘eu não sou nazista’ se tornou um refrão comum entre a população que, por suas ações e inações diárias, teve tanta responsabilidade pelo Holocausto quanto Hitler ou Eichmann.”

Segundo o autor, o sucesso da equipe foi documentado em um relatório elaborado pelo Exército americano após a guerra, que estimou que 58% da inteligência de valor no Teatro Europeu foi obtida pelos Ritchie Boys.

Filhos e Soldados
Bruce Henderson, tradução Claudio Carina
Selo Crítica da Editora Planeta, 464 págs.

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