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EUA não são responsáveis pelo enfraquecimento da democracia

Expansão da liberdade após a Guerra Fria foi exceção à regra autocrática

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Janan Ganesh
Financial Times

Se não fosse por Israel, um motorista imprudente poderia dirigir da extremidade nordeste da Rússia, aquela que fica de frente para o Alasca, até a ponta sudoeste de Angola sem passar por um único país dito “livre” ou mesmo “parcialmente livre”. Esse mapa desalentador justifica por si só o título bombástico de “Democracy Under Siege” (a democracia assediada), relatório da ONG Freedom House.

Os autores do relatório carregam nos dados lúgubres. Em nenhum ano desde 2005 o número de países que aprimoraram suas instituições democráticas superou o dos países que as enfraqueceram.

Entre os malfeitores recentes estão o país mais forte do mundo (EUA) e o segundo mais populoso (Índia). A China, potencialmente o país dominante do século, recebeu apenas nove pontos por liberdade geral (de um total possível de 100).

Apoiadores do ex-presidente Donald Trump entram em confronto com a polícia no dia da invasão do Capitólio, em Washington - Olivier Douliery - 6.jan.21/AFP

Não faltam problemas metodológicos aqui. Táticas “punitivas” contra a imigração deveriam reduzir a pontuação dos EUA? E que história é essa de “desigualdade exacerbada de renda” ser incluída numa revisão cívica?

Mesmo assim, na medida em que os valores são quantificáveis, o estilo liberal de governo segue uma trajetória descendente fartamente documentada. Os EUA e o Ocidente mais amplo têm apenas um consolo: a maior parte da crise não é culpa deles. Decorre disso que o alívio da crise é uma tarefa que está fora de seu alcance.

Não há nada de estranho nem sequer de novo na falta de liberdade. É o boom democrático visto desde a Guerra Fria que constitui a aberração histórica. Países com pouca ou nenhuma experiência de instituições livres finalmente as ensaiaram. Embora o recuo subsequente seja trágico, é preciso um tipo especial de ingenuidade para sentir muito choque diante disso.

Se existe uma “recessão democrática”, ela partiu de um pico singular e que nunca chegou a ser sustentável. Como a maioria das recessões, ela não desfez todos os avanços da expansão anterior. A novidade real é a tenacidade com que a democracia tem resistido em boa parte da Europa ex-comunista e da América do Sul. Ali, não obstante os receios em torno do Brasil, apenas a Venezuela é “não livre”.

É revelador o fato de que a iliberalização do mundo segue adiante, independentemente do que fazem os EUA. Se o processo começou em 2006, então aquilo que o Freedom House descreve como “o eclipse de liderança americana” sob Donald Trump não pode ser visto como responsável.

Os presidentes americanos ao longo desse período incluem um líder belicoso e propagador de democracia (George W. Bush), um liberal ortodoxo (Barack Obama) e um nacionalista amoral, na pessoa do próprio Trump.

Estivesse a América usando de força justa, defendendo a ordem global ou bajulando ditadores, os sinais vitais da democracia não piscaram em resposta. Em algum momento Washington talvez seja obrigada a encarar a possibilidade de que outros países possuem livre-arbítrio.

O estado do mundo não é a soma das políticas externas dos EUA, quer estas sejam toscas, bem-intencionadas ou toscamente bem-intencionadas.

É difícil saber qual partido político precisa mais dessa lição. A ideia equivocada dos democratas é que Trump, diretamente ou graças a seu descaso e inação, teve muito a ver com o mal-estar democrático do mundo (além de tê-lo promovido em casa). Entre a direita marcial, a crença numa política externa pautada por causa e efeito se estende à ideia espantosamente persistente de que a América “perdeu” a China para o comunismo em 1949.

Apesar de insossa, a visão alternativa parece quase subversiva demais para ser aventada. Ela reza que a democracia não precisa ser o destino teleológico de todos os países. Os meios empregados para promovê-la que vêm de fora com frequência são insensatos (guerras) ou têm eficácia irregular (sanções).

E, se o Ocidente não conseguiu fazer a liberdade deitar raízes como o padrão global quando estava em ascendência, é pouco provável que o faça no momento em que a balança do poder mundial vai pendendo cada vez mais para o Oriente.

Não é como se a liderança pelo exemplo tivesse grandes resultados. Há uma frase circulando segundo a qual o presidente Joe Biden poderá ajudar a democracia no âmbito internacional, protegendo-a em casa. É uma ideia doce, que permite uma medida de idealismo sem os fracassos violentos do Iraque e da Líbia. E, intuitivamente, passa a impressão de ser verdade.

O problema está em encaixar a teoria com os fatos. Está claro que a democracia americana estava mais sadia em 1971 do que está em 2021. Mas o número de democracias no resto do mundo era muito menor em 1971.

Ao longo da década de 1960, enquanto os EUA foram estendendo o direito de voto a milhões de eleitores negros, o mundo que assistia a isso “deveria” ter ficado inspirado. Em vez disso, as autocracias se multiplicaram. Mesmo que permitamos um atraso e façamos vista muito grossa, é difícil identificar uma correlação, muito menos um vínculo causal, entre a vida interna dos EUA e o destino da liberdade no mundo.

A razão pela qual devemos fortalecer a democracia em casa é que isso é um bem inato. A ideia de que isso faça a menor diferença que seja no resto do mundo virou uma dessas máximas que só sobrevivem graças à repetição.

A franquia universal tem só um século de idade, mais ou menos. Antes de seus lapsos mais recentes, repúblicas tão consolidadas quanto a Índia e a América passaram pela Emergência (estado de emergência que ficou em vigor na Índia entre 1975 e 1977) e pelo período da segregação racial sob as leis Jim Crow.

Tenho 39 anos; nasci antes de várias democracias na Europa. Quando o sistema liberal não está assediado, isso é notícia. O desespero diante do declínio dele é apenas natural. Seria mais apropriado sentir espanto com sua sobrevivência.

Tradução de Clara Allain

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