Legado de Gandhi sobrevive cem anos após condenação por desobediência civil
Líder ainda hoje simboliza Índia independente e inspira herdeiros políticos e soft power de Nova Déli
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Há cem anos, em 18 de março de 1922, Mohandas Gandhi começou a cumprir uma sentença de seis anos imposta pelo Império Britânico —então governante do que hoje são Índia, Paquistão e Bangladesh.
A punição, a mais longa aplicada ao indiano, foi motivada por seus protestos contra o domínio colonial, marcados pelo que ficou como sua principal herança: a desobediência civil não violenta.
Sistematizada por Gandhi na filosofia intitulada satyagraha ("a ideia da força da verdade"), essa forma de manifestação era caracterizada pela resistência pacífica à violência. Ou seja, adeptos da tática não reagiam ativamente a ataques, prisões e agressões perpetradas pelo poder colonial.
Apesar de aparentar passividade, o método surtiu efeito suficiente para que Gandhi fosse condenado e preso —mais de uma vez— e para que a Índia conquistasse a independência, em 1947.
"Desobediência civil é o nome moderno da tática de resistência, em geral pacífica, a uma legislação ou instituição. Foi usada por muitos movimentos sociais, e aqui no Brasil pelo movimento pela abolição da escravidão", conta a socióloga e colunista da Folha Angela Alonso.
A professora de história Mirian Oliveira, da Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), afirma que Gandhi é visto e representado como um dos pais da nação indiana. "Nas repartições públicas sempre vai ter uma imagem da figura dele, ele sempre é lembrado em cerimônias oficiais."
A não violência faz parte, ainda, do projeto de soft power indiano, que vende ao exterior uma imagem de país tolerante e pacífico —apesar de suas fortes desigualdades sociais e conflitos étnicos, como disputas territoriais com os vizinhos Paquistão e China, com direito a tensões militares, e internas, no Punjab, marcado pelo separatismo sikh.
Com todas as contradições, a história da independência indiana é indissociável da imagem de Gandhi, "seja para louvar e endeusar ou para rejeitar —embora seja difícil rejeitar", afirma Vinicius Tavares, especialista em Índia que leciona relações internacionais na PUC Minas.
O modelo de desobediência civil foi exportado antes mesmo das investidas diplomáticas indianas. Alonso cita os ativistas pacifistas contrários à guerra do Vietnã, e outro adepto ilustre foi o pastor Martin Luther King Jr., nome central do movimento negro por direitos civis nos EUA, que chegou a fazer uma viagem à Índia, em 1959.
Como o pastor, Gandhi cresceu em um ambiente religioso. Sua mãe, Putlibai, era devota hindu, e o estado em que viviam era fortemente influenciado pelo jainismo. Mirian Oliveira frisa que essa religião observa muito estritamente a não violência. "Seus seguidores não podem, por exemplo, ser agricultores, porque teriam que matar insetos. É uma concepção extrema."
A rigidez religiosa acompanhou Gandhi quando ele foi estudar direito na Inglaterra, em 1888. Ele se juntou à sociedade vegetariana e fez votos à mãe de que não cederia ao modo de vida ocidental: consumo de carne, de álcool e relações com mulheres.
Em 1891, formado, retornou à Índia, mas logo viajaria novamente, em 1893, para a África do Sul, outra colônia britânica à época. Ali ele maturaria as posições anticoloniais e sofreria com políticas racistas, que classificavam asiáticos e negros como cidadãos de segunda classe —Gandhi foi preso algumas vezes por resistir à exigência constante de apresentar documentos.
Sua posição, porém, não era livre de contradições. Ainda na África, fez comentários em que considerava os povos asiáticos superiores aos negros e chegou a se referir a estes como "kaffirs", termo racista usado no apartheid sul-africano.
Biógrafos apontam que, aos poucos, a posição do indiano foi se abrandando, e a defesa da libertação colonial passou a ser irrestrita. Em 1910 ele fundou o ashram (espécie de retiro comunitário) Fazenda Tolstói, perto de Joanesburgo, a partir de onde difundiu os ideais de não violência.
O nome do local homenageia o escritor russo Liev Tolstói (1828-1910), que foi uma espécie de guru para Gandhi. Após servir na Guerra da Crimeia (1853-1856), Tolstói assumiu uma visão de mundo anarquista e pacifista, dizendo que jamais serviria "a nenhum governo, em nenhum lugar".
"[Gandhi] pega a desobediência civil que já existia em outros lugares, de inspiração ocidental, e vai dialogar com as culturas locais para desenvolver um método particular", diz Oliveira.
Em 1914, Mohandas se tornaria "mahatma", título honorífico traduzível como "venerável". No ano seguinte, retornaria à Índia de vez, dedicando sua militância à construção de um movimento de independência. "Ele inspira uma quantidade gigantesca de pessoas e vai ganhando eleição atrás de eleição", lembra Tavares.
O Partido do Congresso, que ele liderou, hoje faz oposição ao primeiro-ministro Narendra Modi, nacionalista hindu comparado ao brasileiro Jair Bolsonaro (PL).
Rahul Gandhi, neto da primeira mulher a chefiar o governo indiano, Indira, e bisneto do primeiro premiê pós-independência Jawaharlal Nehru, é a figura à frente do partido (apesar do sobrenome, Rahul não é parente de Mohandas; seu avô Feroze Gandhy mudou a grafia do nome em homenagem ao mahatma).
Oliveira lembra que a tática da não violência não foi livre de contestação, e que Gandhi teve fortes desavenças com líderes étnicos —enquanto apelava para as massas e apostava na autoidentificação como instrumento de mobilização.
Em 1921, ele adotou as vestes de algodão cru. "Ele se torna modelo de conduta, encarna a proposta de transformação pessoal, de eliminar de si mesmo a dominação do jugo britânico por meio de suas vestimentas, de sua alimentação, seu comportamento cotidiano", diz a especialista. "Ele pensava a independência não só como política, mas também do ponto de vista cultural e individual."
Eliminar a influência do colonialismo, porém, não atropelou a adoção de uma Carta Magna que previa a Índia como Estado secular —mas que admite "a tolerância de símbolos e ideias religiosas na esfera pública".
A independência dos britânicos, em 1947, significou também o doloroso processo de partição em dois Estados no subcontinente: um hindu (Índia) e um muçulmano (Paquistão). "Com a obrigação de dois Estados, podia-se questionar: o que esse muçulmano está fazendo no meu Estado hindu? É um incentivo para criar cidadãos de segunda classe, e Gandhi sabia que esse problema seria criado", diz Tavares.
No dia seguinte à declaração de independência, Gandhi fez uma greve de fome em protesto contra a divisão. Menos de um ano depois, ele seria assassinado em um ashram por um nacionalista hindu que acreditava que o líder fora excessivamente generoso com grupos muçulmanos.
A filosofia e a prática sistematizadas por ele, porém, encontram ecos até hoje. Mirian Oliveira cita entre os herdeiros do mahatma a ativista ecofeminista Vandana Shiva. Residentes palestinos de territórios ocupados pelo Estado de Israel, segundo Angela Alonso, seriam outro exemplo do legado de Gandhi. "Qualquer resistência a uma lei ou instituição injusta configura o uso da tática da desobediência civil."
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