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Descrição de chapéu Sudão

Como a guerra civil do Sudão se tornou um campo de batalha global

Com 150 mil mortos e milhões de deslocados, país é disputado por Rússia, Irã e Emirados Árabes Unidos

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Andres Schipani
Omdurman (Sudão) | Financial Times

Cada barulho de tiro faz o jovem de 15 anos tremer. No início deste ano, ele foi capturado por milicianos enquanto jogava futebol e aprisionado com cerca de 30 meninos adolescentes. No início, o trabalho deles era lavar as roupas dos combatentes e polir suas botas; depois, muitos foram estuprados.

Um dia, uma AK-47 foi colocada nas suas mãos, diz ele. "Se você não pegar o fuzil e lutar conosco contra o Exército, mataremos suas famílias", disseram a ele e aos outros sequestrados. Depois de serem alimentados à força com estimulantes, foram acorrentados a uma caminhonete e levados para um campo de batalha ao sul de Cartum, a capital.

Combatentes do Movimento de Libertação do Sudão, um grupo rebelde sudanês que apoia o chefe do Exército, Abdel Fattah al-Burhan, participam de cerimônia no estado de Gedaref, no sudeste do país - AFP

No entanto, um ataque surpresa de drone permitiu que o menino escapasse, e ele foi posteriormente detido pelas Forças Armadas Sudanesas. Ele está agora em uma casa segura em Omdurman, uma cidade próxima à capital. "Eu queria que essa guerra nunca tivesse acontecido", diz ele.

No entanto, aconteceu. Desde 15 de abril de 2023, o Sudão foi dominado por um conflito brutal, enquanto forças rivais lutam entre si. O Exército, liderado pelo presidente de fato, o general Abdel Fattah al-Burhan, se opõe ao grupo paramilitar RSF (Forças de Apoio Rápido), cujo comandante é o temido Mohamed Hamdan Dagalo, um ex-negociante de camelos conhecido como Hemedti cujas forças são acusadas de cometer limpeza étnica.

Os dois homens se uniram durante um levante popular contra o presidente de longa data e ditador do país, Omar al-Bashir, movimento que levou à sua destituição em 2019; agora, lutando pelos espólios, eles estão à beira de um confronto. Autoridades dos Estados Unidos estimam que os combates mataram 150 mil pessoas.

Ambos os lados foram acusados de crimes de guerra. A ONU alertou que o Sudão enfrenta uma crise de deslocamento sem precedentes —mais de 10 milhões de pessoas, ou um quinto da população do país, fugiram de suas casas. Mais da metade dessa população de 49 milhões está sofrendo insegurança alimentar aguda que ameaça a vida, algumas das piores condições já registradas no país.

Esta é talvez a guerra mais devastadora do mundo, e não há sinal de um vencedor decisivo, muito menos de um acordo de paz tangível. Além dos combatentes de países vizinhos, ela atraiu uma série de atores globais e regionais, cada um lutando para competir por influência e poder em uma nação que é uma das principais produtoras de ouro da África.

"Agora estamos há 16 meses nesse conflito e não vemos um fim à vista", diz Clementine Nkweta-Salami, chefe humanitária da ONU no Sudão. "O que vemos é luta, fome e doenças se aproximando."

Mas, como tantas guerras na África, incluindo a do leste da República Democrática do Congo, os eventos no Sudão passaram despercebidos pela atenção do mundo. Os conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza, considerados estratégicos com óbvias ramificações geopolíticas, provocaram sentimentos de solidariedade e protestos em massa. Mas houve pouco lamento comparável sobre o Sudão.

Mesmo assim, há muito em jogo: a localização do Sudão, banhado pelo mar Vermelho está próxima do Canal de Suez, uma importante passagem para o comércio mundial e já ameaçado por ataques dos rebeldes houthis do Iêmen. Países como Rússia e potências do Oriente Médio são acusados de despejar dinheiro e armas.

"O dia 15 de abril de 2023 mudou tudo no Sudão", diz Ahmed Osman Hamza, governador do estado de Cartum, enquanto explosões ressoam ao fundo. "Esta é uma guerra contra o povo."

De seu reduto em Darfur, terra natal de Hemedti que ocupa o oeste e o sudoeste do país, as RSF e suas milícias aliadas agora controlam vastas extensões de território; estima-se que tenham tomado grande parte da região ao redor de Cartum no ano passado. Enquanto isso, com a capital sob cerco, Burhan e o Exército se retiraram para Porto Sudão, 670 quilômetros a nordeste e na costa do mar Vermelho. Ele tem tentado uma contraofensiva a partir dali. Dos 18 estados do Sudão, 14 agora estão envolvidos na luta.

O contexto geopolítico é complexo. Enquanto pilotos ucranianos aposentados tomam suco de manga e se deleitam com lagosta em Porto Sudão ao lado de comandantes do Exército, atiradores russos também estão treinando os militares de Burhan, de acordo com oficiais de inteligência sudaneses. Enquanto isso, generais do país afirmam que as RSF recrutaram "mercenários" da República Centro-Africana, Chade e Sudão do Sul.

Relatórios recentes da Anistia Internacional e da Human Rights Watch descobriram que armas produzidas por países tão diversos como China, Irã, Turquia, Rússia e Emirados Árabes Unidos estavam se proliferando em meio a crescentes pedidos de expansão de um embargo sobre armamentos.

O Exército está sendo financiado em parte por exportações de ouro, confirmam autoridades em Porto Sudão, bem como pelo que resta do vasto conglomerado empresarial das Forças Armadas, tudo sustentado por suprimentos de petróleo russo. Desde o início do conflito, a Rússia entregou oito cargas de produtos petrolíferos, principalmente diesel, ao Sudão, de acordo com dados da LSEG (London Stock Exchange Group).

Em contraste, especialistas da ONU acreditam que as RSF estão sendo apoiadas pelos negócios de ouro de Hemedti e pelos Emirados Árabes Unidos. Um painel da ONU apresentou evidências críveis, como descrevem, de que Abu Dhabi tem fornecido armas.

Os Emirados Árabes Unidos insistem veementemente que mantêm "completa neutralidade", criticando "tentativas infundadas de desviar a atenção das questões urgentes". Mas observadores dizem que seu apoio às RSF é motivado por suspeitas de que Burhan esteja muito próximo dos islamitas, que eram proeminentes na era de Bashir. "Os Emirados Árabes Unidos veem a Irmandade Muçulmana fervendo no Sudão", diz um diplomata estrangeiro de alto escalão. "Isso é o que os está impulsionando."

Os próprios recursos do Sudão também estão em jogo. O conflito afundou um programa de reforma apoiado pelo FMI e colocou em risco ainda mais a capacidade de Cartum de pagar credores, incluindo a China, em um momento em que o país estava negociando alívio da dívida. A economia encolheu 40% no ano passado, estima Jibril Ibrahim, ministro das finanças das instituições controladas por Burhan.

Mas além de ser um dos principais produtores de ouro da África, o país possui recursos que outros países desejam, incluindo extensas áreas de terras aráveis férteis ao longo do Nilo. Mais importante ainda, possui 750 quilômetros de litoral do mar Vermelho em direção ao Canal de Suez, onde países como Irã, Rússia e Emirados Árabes Unidos estão disputando acesso.

Após a queda de Bashir em 2019 —que oscilou entre Teerã e Riad por anos— Burhan fortaleceu laços com os Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita e Egito e até iniciou uma reaproximação com Israel.

Mas então veio o conflito. Em busca de aliados, Burhan e seus generais reabriram laços diplomáticos com o Irã; analistas e diplomatas dizem que o país desde então forneceu drones. "Esta é agora uma guerra do Oriente Médio sendo travada na África", diz um diplomata ocidental de alto escalão.

Se antes o grupo de mercenários russos anteriormente conhecido como Wagner treinava as RSF, nos dias de hoje Moscou parece cada vez mais alinhada com Burhan. Líderes militares sudaneses e autoridades russas falam em reviver planos para permitir uma base naval russa no mar Vermelho.

"Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Irã, Rússia —todos estão buscando uma posição no Sudão", diz Suliman Baldo, chefe do think-tank Sudan Transparency and Policy Tracker. "A Rússia também quer o ouro do Sudão."

Falando de "países e forças negativas jogando lenha na fogueira do Sudão", o enviado especial dos EUA, Tom Perriello, pediu a "todos os atores externos para pararem de alimentar esta guerra, pararem de armar os participantes".

A guerra desencadeou atrocidades em massa, o que levou a uma investigação pelo procurador do TPI (Tribunal Penal Internacional). A conselheira especial da ONU, Alice Wairimu Nderitu, falou sobre "indicadores de genocídio" e "ataques motivados etnicamente" contra comunidades não-árabes em Darfur, inclusive pelas RSF.

As RSF —descendente da milícia Janjaweed, acusada de genocídio em Darfur há 20 anos— afirma ter cerca de 300 mil combatentes, muitos deles irregulares e que foram acusados pelo Exército sudanês, governos estrangeiros e organizações internacionais de atos terríveis.

Uma garota de 16 anos lembra que foi sequestrada em Omdurman no início deste ano. "Dois milicianos das RSF me amarraram, me espancaram e me estupraram várias vezes", diz ela. Na sala ao lado, eles "bateram muito" em seu irmão, suspeitando que ele estivesse no Exército; foi a última vez que ela o viu. As RSF "não tem piedade, não há humanidade neles", diz ela.

No entanto, ambos os lados foram implicados, de acordo com um relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU publicado na semana passada que fala de "violações horripilantes dos direitos humanos e crimes internacionais".

Enquanto as RSF é alvo de críticas especiais, tanto ela quanto o Exército são acusados de ataques "em larga escala" contra civis, escolas, hospitais e outras infraestruturas, bem como estupro e outras formas de violência sexual. Os autores argumentam que "é imperativo que uma força independente e imparcial com mandato para proteger civis seja implantada sem demora".

No final do mês passado, a Human Rights Watch disse que ambos os lados "executaram sumariamente, torturaram e maltrataram pessoas sob sua custódia e mutilaram corpos", citando casos em que soldados do Exército brandiram cabeças decapitadas.

O procurador-geral alinhado ao Exército do Sudão, Al-Fathi Mohammed Issa Tayfour, insiste que as RSF são responsáveis pela "maioria avassaladora" das atrocidades. Ezzedine al-Safi, representante político das RSF e primo de Hemedti, reconhece que "há soldados das RSF que cometeram crimes", mas afirma que sua força estabeleceu um comitê para investigar abusos e que 400 homens já foram condenados.

"O que está acontecendo no Sudão não aconteceu desde a Idade Média, em nenhum lugar", diz um empresário sudanês sobre os combatentes das RSF. "Houve muitas guerras e guerras civis em todo o mundo, mas ninguém fez o que esses caras fizeram —eles destruíram sistematicamente o Sudão."

Depois da violência, cólera e fome assolaram o país. No mês passado, um comitê internacional afirmou que agora há fome no campo de deslocados de Zamzam, perto da cidade sitiada de El-Fasher, em Darfur. Dados apoiados pela ONU sugerem que 755 mil pessoas em dez estados enfrentam fome "catastrófica". No geral, a vida de aproximadamente 25 milhões de pessoas está em perigo devido à desnutrição.

Entregas de ajuda em áreas ocupadas pelas RSF foram atrasadas por autoridades controladas pelo Exército em Porto Sudão, mas organizações não governamentais dizem que também houve detenções, roubos e saques por combatentes das RSF. O enviado especial dos EUA, Perriello, chama isso de "fome fabricada pelo homem, armada por violações sistemáticas do direito humanitário internacional". Está "se espalhando rapidamente", acrescenta.

Mas o ministro da Agricultura do Sudão, Abubakr al-Bushra, questiona os números da ONU, contrapondo que "não há fome alguma" e rejeita as sugestões de que o Exército esteja dificultando a ajuda. "Como podemos bloquear ajuda para nosso povo?", pergunta ele.

Embora haja esperanças de que a situação possa amenizar —no mês passado, o Exército concordou com a reabertura de rotas de acesso humanitário— para muitas pessoas o estrago já está feito. Em um hospital em Omdurman, Halima Ahmed segura sua filha de dois anos e meio nos braços; ela pesa apenas 5kg e ficou cega após meses de desnutrição. No mês passado, após intensos combates, eles fugiram de Gezira, um estado ao sul de Cartum que era conhecido como celeiro do Sudão.

No mês passado, enquanto funcionários da ONU alertavam que o Sudão estava em um "ponto de ruptura catastrófico, cataclísmico", novas conversas lideradas pelos EUA para encerrar a guerra começaram em Genebra. Arábia Saudita, Suíça, Egito, União Africana e Emirados Árabes Unidos estão envolvidos.

No entanto, alcançar a paz está longe de ser fácil. Quando Perriello tentou fazer com que os lados opostos se sentassem para negociar, o Exército recuou. "As operações militares não cessarão até que a última milícia se retire das cidades e vilarejos que violaram e colonizaram", disse Burhan. Por sua vez, Hemedti respondeu: "Burhan e sua turma não têm nenhum compromisso genuíno com a negociação. (...) Não permitiremos que um mero grupo de generais aterrorizados, que fugiram da capital, controlem o destino de nosso povo".

Analistas dizem que Burhan, que sobreviveu a uma tentativa de assassinato em julho, é um ator cada vez mais fraco, cercado por generais e islamitas com objetivos e lealdades concorrentes, e não está em posição de negociar. "Os islamitas têm um forte controle" sobre Burhan, diz um diplomata estrangeiro de alto escalão.

Ambos os lados acusam um ao outro de violar um acordo sobre a proteção de civis feito em Jeddah no ano passado. Hemedti recentemente disse a seus homens para aderirem às regras, mas aqui seu controle também é duvidoso. "As RSF são uma mera aliança de gangues criminosas envolvidas em saques, assassinatos, estupros", diz Amjed Farid, ex-chefe de gabinete de Abdalla Hamdok, ex-primeiro-ministro.

O Exército não quer que os Emirados Árabes Unidos se envolvam nas negociações por causa de seu suposto apoio às RSF. "Você não pode ser o juiz e o criminoso ao mesmo tempo", diz o ministro das Finanças Ibrahim, que também lidera um grupo armado aliado ao Exército. Nem todos concordam —e se os Emirados Árabes Unidos realmente estiverem envolvidos, "como teríamos um acordo de paz sem os Emirados Árabes Unidos à mesa?" pergunta um negociador.

Talvez a questão maior seja se os cidadãos do Sudão terão voz na negociação sobre o futuro de seu país. Um desafio chave para esses grupos, que são principalmente liderados por civis, é que eles estão desunidos. Alguns são vistos como alinhados com o Exército, enquanto a coalizão Taqaddum liderada pelo ex-primeiro-ministro Hamdok foi acusada de ser próxima das RSF, embora insista que é neutra.

"Precisamos de mais contribuições civis porque nenhum lado aceitará qualquer acordo de cessar-fogo sem ter uma ideia do que acontecerá com eles depois", diz Nureldin Satti, ex-embaixador sudanês nos EUA, que agora faz parte de uma série de coalizões democráticas que incluem partidos políticos, organizações civis e grupos armados irregulares.

Sem surpresa, tanto o Exército quanto as RSF se apresentam como defensoras da democracia. Hemedti disse na sexta-feira (8) que suas forças queriam "estabelecer firmemente as bases da paz e da democracia". O tenente-general do Exército Ibrahim Jaber, membro do Conselho de Soberania Transitória do Sudão, diz que "após pararmos a guerra, anunciaremos um período de transição com um governo tecnocrático para trabalhar juntos em direção às eleições".

Dada a íntima relação entre militares e política —o Sudão testemunhou pelo menos 17 golpes bem-sucedidos desde a independência, em 1956— muitos cidadãos duvidam que qualquer um seja o líder legítimo do país. "Não queremos ver nenhum uniforme militar no poder", diz Duaa Tariq, ativista em Cartum. É como escolher "entre cólera e malária", brinca um comentarista.

Muitos temem que o Sudão, que já perdeu o Sudão do Sul para a independência em 2011 após uma guerra, possa se fragmentar em pelo menos duas regiões concorrentes. Suliman Arcua "Minni" Minnawi, ex-líder rebelde transformado em governador de Darfur e cujas forças estão lutando contra as RSF, acredita que se Hemedti falhar em sua tentativa de assumir o país, ele tentará criar um "governo de fato" baseado em Darfur. O mesmo aconteceu na Líbia, vizinha noroeste do Sudão, que agora é governada por dois governos apoiados por milícias rivais.

Por sua vez, Perriello adverte que o Sudão corre o risco de se tornar uma "grande Somália", cuja descida sangrenta para a anarquia nos anos 1990 também começou com dois líderes com exércitos em conflito. O país se tornou um estado falido arquetípico. "Neste momento, as partes não têm a vontade política de parar de lutar e, na verdade, estão acelerando o conflito", diz ele.

Kholood Khair, diretora da consultoria baseada em Cartum Confluence Advisory, coloca as coisas de forma mais sucinta. "Nenhum lado está interessado em encerrar a guerra antes de conseguir o que quer", diz ela.

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