Descrição de chapéu África folha explica

Conflito no Sudão que já matou mais de 550 é legado da era colonial

Região norte do país africano recebeu mais investimentos da metrópole, o que criou desigualdade com o sul

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Considerado um dos países mais instáveis do mundo, o Sudão tem histórico extenso de conflitos armados e disputas de militares pelo poder. Novos combates explodiram nos últimos dias, provocando a morte de ao menos 550 pessoas e alimentando o temor de uma crise humanitária sem precedentes em toda a região.

Os confrontos começaram no último dia 15 entre as forças do Exército regular, lideradas pelo general Fatah al-Burhan, e do grupo paramilitar RSF (Forças de Apoio Rápido, em português), comandado pelo também general Mohamed Hamdan Dagalo, conhecido como Hemedti.

Colunas de fumaça preta após bombardeio aéreo na capital, Cartum, no Sudão
Colunas de fumaça preta após bombardeio aéreo na capital, Cartum, no Sudão - Mohamed Nureldin Abdallah - 1º.mai.23/Reuters

Juntos, eles derrubaram em 2019 a ditadura de 30 anos de Omar al Bashir. Dois anos depois, participaram de um golpe de Estado que encerrou a transição para um regime democrático. No comando do país, os generais passaram a divergir sobre a participação dos paramilitares no Exército e sobre a formação de um novo governo, alimentando rumores sobre confrontos armados que se concretizaram em abril.

Os combates no Sudão são resquícios da era colonial que militarizou e dividiu o país, segundo Lucas de Oliveira Ramos, especialista em dinâmicas de segurança na África e doutorando em relações internacionais.

Conheça mais sobre a história do Sudão a seguir.

Como foi o processo de colonização do país?

Localizado no nordeste da África, o Sudão foi colônia do Reino Unido e do vizinho Egito num arranjo considerado raro chamado de "condomínio", estabelecido em 1899. Na prática, os europeus controlavam a área sudanesa de forma indireta, apoiando reis egípcios que administravam o território.

No período, a população do norte sudanês recebia armas da coroa britânica em troca de recursos naturais, segundo Lucas Ramos. O processo deu início à formação das elites sudanesas, à época já militarizadas e patrimonialistas.

Por que o norte se desenvolveu mais que o sul?

Também a desigualdade é legado do período colonial. De acordo com Ramos, a coroa britânica financiou grupos sedentários estabelecidos ao norte, nas margens do rio Nilo, que sobreviviam da atividade pastoril.

Ao sul, os grupos eram nômades e não receberam recursos. "Na época da colonização, era comum a metrópole escolher um grupo para atuar como intermediário entre a coroa e a população local", afirma.

O resultado foi a segregação do sul, que recebeu investimentos inexpressivos e teve pouca participação política, o que estimulou a insatisfação da população local. A concentração da elite em Cartum, a atual capital do Sudão, aprofundou as diferenças regionais.

Como o Sudão conquistou a independência?

O Sudão se tornou independente em 1956 como consequência da Segunda Guerra Mundial. Enfraquecidos economicamente em função do conflito, países europeus destinaram menos recursos às colônias e foram aos poucos perdendo o controle sobre os territórios.

A participação de tropas sudanesas ao lado dos Aliados na Segunda Guerra acelerou o processo de emancipação como parte do reconhecimento pelos esforços na luta, diz o professor Alexandre Dos Santos, de política e história do continente africano no Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ.

Mas o processo não foi pacífico. Houve conflitos entre forças da metrópole e rebeldes influenciados por Maomé Amade (1844-1885), que liderou uma guerra anticolonial contra o domínio militar otomano e egípcio no século 19.

Qual é a forma de governo do Sudão?

Oficialmente, a forma de governo vigente no Sudão é o presidencialismo. Mas, desde a independência, o país tem sido dominado por ditadores e líderes autocráticos acusados de cometerem violações contra os direitos humanos.

Quem se manteve mais tempo no poder foi o ditador Omar al-Bashir. Ele liderou um golpe militar contra um governo eleito em 1989. Foi deposto 30 anos depois pelas Forças Armadas, que instituíram um governo de transição para a democracia.

"A política do Sudão é pendular. Está sempre alternando revoluções populares que derrubam ditadores e golpes de militares que dão um jeito de voltar ao poder", diz Santos.

Em 2021, um golpe militar com a justificativa de restaurar a ordem encerrou a transição para o regime democrático instalado após o regime de al-Bashir. Já os confrontos iniciados no mês passado caracterizam uma tentativa de golpe dentro do golpe.

Quantas guerras civis o Sudão já teve?

O Sudão teve duas longas guerras civis, com confrontos entre forças do norte do país e do sul.

A primeira começou em 1955, quando líderes do sul exigiram maior autonomia regional. De acordo com Santos, no processo de transição para a independência, em 1956, a coroa britânica não considerou a divisão política no país africano, negociando apenas com representantes do norte, o que gerou revolta.

O acordo que pôs fim aos combates em 1972 fracassou, levando à explosão de um novo conflito norte-sul de 1983 a 2005. Esse conflito é considerado um dos mais mortais do final do século 20. Estimativas apontam de 1 milhão a 2,5 milhões de pessoas mortas, a maioria dos quais civis.

O Sudão tem conflitos étnicos ou religiosos?

Sim. A Segunda Guerra Civil Sudanesa (1983-2005), por exemplo, começou quando o governo muçulmano do norte tentou impor a sharia, a lei tradicional islâmica, em todo o país, inclusive no sul, onde os cristãos estão concentrados.

Os confrontos entre as duas partes quase sempre são justificados como consequência das diferenças étnicas e religiosas no Sudão, sendo o sul predominantemente cristão, e o norte, muçulmano. Especialistas ponderam, porém, que é preciso levar em consideração as desigualdades sociais e econômicas.

Quando o Sudão foi dividido?

Depois de longos períodos de guerra civil, o Sudão do Sul se tornou um país em 2011, após a população votar em referendo pela independência do território. Desde então, a nação africana vem enfrentando diversos problemas relacionados a infraestrutura e administração —hoje é um dos Estados mais pobres do mundo. Também depende de recursos e tecnologia do vizinho ao norte.

Qual é a relação da história do Sudão com o conflito atual?

O conflito atual é resultado de uma sociedade militarizada, violenta e dividida. As Forças de Apoio Rápido nasceram em um embate na região sul do país. O grupo paramilitar tem origem nas chamadas milícias janjaweed, acusadas de terem cometido atrocidades na região de Darfur nos anos 2000. À época, soldados foram convocados pelo então ditador, Omar al-Bashir, para reprimir uma rebelião liderada por povos não árabes. Estima-se que 300 mil pessoas foram mortas no conflito.

Com o passar do tempo, o grupo cresceu e passou a ser usado como guarda de fronteira, principalmente para reprimir migração irregular. Em 2017, foi aprovada uma lei que legitima o grupo paramilitar como força de segurança independente. Em 2019, após a destituição do ditador, o general Hemedti assinou um acordo de compartilhamento de poder que o tornava o número dois no comando do Sudão.

O número um é o general al-Burhan, que controla o Exército sudanês.

Qual é a situação atual do conflito?

Desde o início dos combates, ataques aéreos e de artilharia mataram ao menos 550 pessoas e feriram quase 4.900 até esta quinta (4). As ofensivas também destruíram hospitais e limitaram a distribuição de alimentos —um terço da população de 46 milhões de pessoas já dependia de ajuda humanitária.

A Organização Mundial da Saúde disse na semana passada que apenas 16% das instalações de saúde estavam funcionando em Cartum e projetou "muito mais mortes" devido a doenças e à escassez de alimentos, água e serviços médicos. Estima-se que 50 mil crianças com desnutrição aguda tiveram o tratamento interrompido, e os hospitais que ainda funcionam enfrentam falta de suprimentos, energia e água.

Quantos brasileiros estão no Sudão?

O Itamaraty informou, em nota enviada à Folha na terça (2), que 24 dos 27 brasileiros que estavam no Sudão já deixaram o território; os demais foram transferidos para áreas de menor risco relativo e aguardam oportunidades para deixarem o país.

Já a rede chinesa CCTV noticiou que o navio Weishanhu, da Marinha do Exército de Libertação Popular, levou seis brasileiros do Sudão para o porto de Jeddah, na Arábia Saudita, no final de semana.

Questionado sobre a operação, o Itamaraty informou que conta com a cooperação de diferentes parceiros internacionais, entre os quais a ONU, a Espanha, a Suécia, a França, a China e a Arábia Saudita.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.