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Mariliz Pereira Jorge

Acredite no Hamas

Contestar crimes sexuais para defender uma ideologia tem nome: misoginia

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Mariliz Pereira Jorge

Jornalista e roteirista de TV, é colunista da Folha

Otavio Frias Filho foi um radical defensor da liberdade de expressão. Mas foi também obsessivo com a correção do que era publicado na Folha. Não à toa foi sob sua gestão como diretor de Redação do jornal a criação da seção Erramos, em 1991, o terror de repórteres e de colunistas, inexperientes e tarimbados.

Há poucos anos, eu arrastava mentalmente as correntes da vergonha por ter avaliado mal a informação de uma fonte e tive que carimbar o nome no purgatório da página A3, onde os erros são registrados na história. Na ocasião, o mestre Clóvis Rossi me disse o seguinte: "Cada vez que cometo um erro, penso em suicídio. Mesmo os erros que os outros nem percebem, mas que eu sinto como se houvesse um dedão enorme apontando para mim, com riso sarcástico e dizendo: 'Não pense que não é uma besta'. Demora para passar. Nem adianta lembrar que foi um erro só em 'x' anos. Sempre parece o 7 a 1. Mas passa".

A capitã israelense Maayan chora ao narrar o que presenciou após o ataque: "Vemos vítimas de estupro. Vemos mulheres que passaram por violação. Temos legistas e vemos os hematomas, aprendemos sobre os cortes e rasgos e sabemos que elas foram abusadas sexualmente"

O desconforto diminui, mas o medo do erro não nos abandona. Um colunista jamais deve afrouxar o compromisso com os fatos, sua opinião não se forma sem que as bases de suas informações sejam sólidas. O "erramos" continua onde sempre esteve, à espreita de um deslize. A Folha continua, ao que tudo indica, zelosa pelo material que publica. Não considero incomum o pedido de checagem de um dado, de uma fonte, uma declaração. É o bom jornalismo.

Assim como Otavio, sou ferrenha defensora da liberdade de expressão, mas lamento que o mesmo rigor com a informação não seja adotado pelo jornal ao dar espaço a quem derrama platitudes e escreve qualquer bobagem sem sustentação. No artigo "Gaza entre o silêncio e as fake news" (15/7), Salem Nasser se mostra aborrecido porque o grupo terrorista Hamas é chamado de "grupo terrorista", diz que lê nesta Folha "sobre um mundo representado, não sobre o real". Vai além: diz que eu "insisto" em relatar episódios que "não aconteceram no dia 7 de outubro". Segundo o autor, as fontes que menciono, New York Times, ONU e BBC, desmentiram as notícias sobre violência sexual.

Nasser diz que eu minto e fala em "notícias falsas" sem, no entanto, trazer uma única linha que ateste o que escreve. Nasser me chama de mentirosa sem rebater reportagens, declarações, dados e fatos que eu cito em artigos. Poderia dizer que, dessa forma rasa, irresponsável e com interesses explícitos e sem questionamento, até eu quero ter espaço para escrever num grande veículo. Mas a formação que tive, minha consciência profissional e o compromisso com o leitor me impediriam de ser tão leviana.

No mundo de Nasser, só servem fatos que sustentam sua visão de mundo, onde mulheres não foram estupradas, mutiladas, queimadas e mortas em Israel. Deve ser horrível mesmo escolher o lado em que o Hamas não deve ser chamado pelo que é: grupo terrorista. Seu artigo é um dos melhores exemplos do que acontece quando alguém é engolido pelo viés da confirmação. Nem diante de fatos, evidências, fotos, vídeos, declarações, a pessoa abandona a estreiteza do seu mundinho.

Não por ele, a quem empresto o meu palanque, mas pelo compromisso com o jornalismo e com o leitor, trago novamente as fontes usadas em meus artigos, os quais Nasser acusa de fake news. No dia 6 de dezembro de 2023, a BBC publicou a reportagem "Hamas mutilou e estuprou mulheres antes e depois de morta", na qual o veículo diz que "viu e ouviu evidências de violência sexual". Em março deste ano, ratificou as alegações de violência quando a ONU confirmou, por meio de um relatório amplamente divulgado, ter "encontrado informações claras e convincentes de que atos de violência sexual, incluindo estupro, tortura sexual e tratamento cruel, desumano e degradante, foram cometidos contra reféns". A equipe das Nações Unidas finalmente visitou Israel entre 29 de janeiro e 14 de fevereiro, quase quatro meses após os ataques. O texto diz ainda que "há motivos razoáveis para acreditar que tal violência pode estar em curso contra aqueles que ainda estão sendo mantidos em cativeiro". Sim, ainda há pessoas sequestradas em Gaza.

O New York Times publicou a primeira grande reportagem sobre os estupros cometidos pelo Hamas em 28 de dezembro. "Como o Hamas usou a violência sexual como arma nos ataques de 7 de outubro" foi o resultado de mais de 150 entrevistas, levou quase três meses para ser concluída pelos três jornalistas envolvidos, um deles vencedor do Pulitzer. O texto descreve em detalhes o nível de crueldade a que meninas e mulheres foram submetidas.

Não é preciso ser especialista para encontrar essas e muitas outras reportagens. Uma simples pesquisa no Google seria suficiente para que Nasser não fizesse ilações e acusações. São relatos de veículos independentes e da ONU, e não dados de um ministério controlado por um grupo terrorista. São também imagens, as quais eu mesma assisti, a contragosto, justamente pelo negacionismo sustentado por marionete de terrorista.

Ter opinião sobre um assunto é o que se espera num espaço de debate. Negar um fato, comprovado por mais de uma fonte, não é questão de opinião, é manipulação, é péssimo exercício de qualquer profissão.

Contestar crimes sexuais para defender uma ideologia tem nome: misoginia. No caso das mulheres israelenses, vou além: é misoginia antissemita. Numa década em que o feminismo luta para que as mulheres tenham vozes, que a violência seja denunciada, nunca imaginei ver a bandeira "acredite nas mulheres" ser tão facilmente substituída pelo grito de "acredite no Hamas".

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