Cozinha Bruta

Comida de verdade, receitas e papo sobre gastronomia com humor (bom e mau)

O terrível macarrão que cheira a ração de cachorro

Covid produz multidão de sequelados que sentem cheiro e gosto da comida de um jeito bizarro

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São Paulo

Já tem mais de meio ano que me recuperei da Covid. Fiquei doente em junho de 2022, quando as mutações do vírus já haviam abrandado a letalidade.

Não tive medo de morrer quando covidei. Minha grande preocupação eram as alterações de olfato e paladar –dois sentidos muito importantes para minha atividade profissional e, bem, para eu fazer as coisas que gosto.

Meus sintomas, de início, foram iguais aos de uma gripe comum. Depois percebi que estava lerdo do pensamento. Na parte sensorial, fiquei alguns dias sentindo gosto amargo onde não tinha amargo. Passou rápido. Achava que tinha sido poupado.

Prato de macarrão
Macarrão de trigo durum (em italiano, grano duro) começou a ter cheiro estranho para mim - Marcos Nogueira

Eis que, algumas semanas atrás, começo a implicar com o cheiro de algo que sempre cozinhei: macarrão. O cheiro da massa na água fervente, e não de qualquer massa: só sentia o odor estranho quando cozinhava macarrão italiano de trigo durum, o grano duro. Uma sensação ligeiramente desagradável.

Passei toda a minha vida cozinhando macarrão desse tipo. Para mim, era um alimento neutro. Nunca tinha notado nenhum cheiro relevante até então.

Eu achei que o problema era com uma marca que eu vinha usando bastante. Testei outra marca. E outra. O cheiro persistiu. Uma noite, deitado para dormir, me passou pela cabeça que o odor do macarrão talvez fosse da minha cabeça. Uma sequela da Covid.

No dia seguinte, escrevi um post a respeito disso no Twitter. Muita gente comentou, muita gente mesmo passou ou passa por coisa semelhante ou pior.

Um perfil que se identifica por Élio perguntou: "Seria um odor semelhante ao de ração canina?".

Pronto. O "ligeiramente desagradável" acabava de ganhar um upgrade. Era isso mesmo.

Imediatamente o cérebro me remeteu à rua principal do bairro Portão, em Atibaia, onde as lojas de produtos para sítio competem pelo cheiro mais forte de ração de cachorro.

Voltando ao Twitter, o post rendeu vários relatos interessante.

Pedro contraiu Covid em 2020 e até hoje tem altíssima sensibilidade para o cheiro de gás de cozinha.

Fernando começou a ter nojo dos cheiros de carne e frango cozinhando.

Rodrigo diz que sua mulher não consegue perceber o odor de comida queimada.

Zé agora acha que café cheira a mato queimado. E passou a detestar coentro, que antes adorava. Já Mikasa não consumia nada que fosse amargo –e agora gosta de café.

Elaine passou a sentir cheiro de barata –é – nos mais requintados perfumes.

Beth, que passou um mês internada em 2021, sente aromas que não estão lá. Cheiro de tintura para cabelo quando não há nenhuma por perto.

Wagner ficou seis meses sentindo fedor de cigarro sem ninguém fumar.

Ana, que amava camarão, agora não suporta mais.

Maria Eduarda abandonou a Coca-Cola, que para ela ficou com gosto de ferrugem.

Edu, cozinheiro e dono de bar, perdeu a mão com o sal. Seus pratos ficam insossos ou salgados demais.

Dizem que a disfunção olfativa se chama parosmia, é muito comum na recuperação da Covid e pode durar vários meses.

Com a Covid se tornando uma doença crônica, teremos uma multidão permanente de gente embaralhando os cheiros e gostos. Como o chef vai tratar o cliente que sentiu cheiro de carniça no bife? E se, na verdade, é o chef que está sequelado e fritou um bife podre sem perceber?

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