Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros

'Sobre Dois Quadrados' mostra como o livro infantil ainda é careta

Conheça a ousada obra russa de El Lissitzky, de 1922, que faz parte do acervo do MoMA e está publicada no Brasil

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Os protagonistas não têm nome, muito menos fala, personalidade ou sentimentos definidos. A história não traz uma linha narrativa clara e nunca entendemos muito bem o que está acontecendo. As ilustrações caminham para o abstrato. O texto tampouco respeita as linhas, preferindo dançar livre pelas páginas, desconstruir palavras e inventar outras novas. Já o final é aberto e deixa uma interrogação no leitor, que termina a leitura sem uma moral da história. E, sim, estamos falando de um livro para a infância.

Livro "Sobre Dois Quadrados", de El Lissitzky
Ilustração de "Sobre Dois Quadrados", de El Lissitzky - Divulgação

No caso, "Sobre Dois Quadrados". Ou, na versão mais longa, "Conto Suprematista Sobre Dois Quadrados em Seis Construções" —obra que certamente deixa muitos pais, professores e editores confusos. Será que meu filho vai entender? Será que meu aluno vai conseguir lidar com uma arte não figurativa? Será que o mercado vai aceitar uma trama sem sem clímax, plot twist, mocinhos e vilões? Será que vai vender e ser aceita nos editais de compra do governo?

Em pleno fim de 2023, "Sobre Dois Quadrados" é daquelas edições que ganham o selo de "literatura de nicho", "livro de proposta", "literatura disruptiva" e outros carimbos que tentam dizer "olha, essa aqui é uma publicação diferentona". Mas existe um detalhe. O título, do autor russo El Lissitzky, foi criado em 1920 e lançado em 1922. Há mais de cem anos.

Se uma obra centenária ainda causa esse tipo de surpresas, isso só pode dizer uma coisa: nossa literatura para infância ainda têm dificuldade de se desvencilhar da caretice.

"Sobre Dois Quadrados" conta a história das duas formas geométricas do título, uma vermelha e outra preta, que voam para longe da Terra e descobrem outro mundo, confuso e desordenado.

Mas essa é uma linha narrativa tênue, na qual nos agarramos porque temos necessidade de resumir tudo o que lemos numa sinopse —ainda mais quando o assunto é a infância, fase em que buscamos deixar tudo mastigadinho e explicadinho. Mas Lissitzky joga essas certezas pelos ares.

Livro "Sobre Dois Quadrados", de El Lissitzky
Página russa do livro "Sobre Dois Quadrados" - Divulgação

Visualmente, a obra provoca revoluções. Nela, elementos gráficos, texto e números caminham lado a lado, de mãos dadas, em pé de igualdade. Como nos melhores livros ilustrados, nada existe de forma independente. O texto perde significado sem a imagem e vice-versa.

No lado textual, palavras se fundem e se separam, criando neologismos e desrespeitando a ordem que nos obriga a ler da esquerda para a direita e de cima para baixo. Tanto que, já no início, há o alerta: "Não leia/ pegue papéis, cilindros, blocos de madeira/ dobre, pinte, construa".

A própria fonte vai se transformando ao longo das páginas, movimento que nos recorda de que as letras têm também o seu lado visual, muitas vezes ignorado. Com isso, tudo fica assimétrico, diagonal e meio desconfortável, o que obriga os leitores a criar uma nova dinâmica de leitura.

Livro "Sobre Dois Quadrados", de El Lissitzky
Capa da edição brasileira da obra, lançada em 2022 pela editora Kalinka - Divulgação

Historicamente, "Sobre Dois Quadrados" é sempre lembrado sempre como uma obra-prima do design. Inserido no contexto das vanguardas que sacudiram a Europa no começo do século 20, a edição ganhou ares de obra de arte e hoje faz parte até do acervo do MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York.

Por isso, muito é falado sobre a sua relação com o novo status que o livro ganha nessa época, quando passa a ser enxergado com as mesmas potencialidades da pintura e da escultura, por exemplo. Estuda-se o diálogo com o suprematismo e o construtivismo russos. Pipocam interpretações sobre a arte ser o motor das mudança, a ruptura com o passado, o comunismo como resposta ao século 20 e tantas outras.

Mas quase sempre um fato muito importante é esquecido —"Sobre Dois Quadrados" foi lançado originalmente para o público infantil, mas sem uma linguagem infantilizada nem subestimar a capacidade de interpretação da criança. Lissitzky mirou nessa faixa etária e confiou que ela teria as chaves para dialogar com as suas propostas.

"Em nenhum país houve um direcionamento tão intenso de escritores e pintores de vanguarda para a esfera infantil como ocorreu na Rússia nos anos 1920 e 1930 —depois de Stálin, tudo mudou", diz Daniela Mountian, editora-chefe da Kalinka, que publicou "Sobre Dois Quadrados" no Brasil no ano passado. "Os livros infantis soviéticos estão no acervo de museus, bibliotecas e universidades de várias partes do mundo, porque em muitos aspectos eles prenunciaram o livro contemporâneo."

Sobre Dois Quadrados

  • Preço R$ 45 (24 págs.)
  • Autoria El Lissitzky
  • Editora Kalinka
  • Tradutora Daniela Mountian

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