Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros Todas Prêmio Nobel

Olga Tokarczuk, prêmio Nobel de Literatura, chacoalha o livro infantil

Vencedora do troféu de 2018 lança 'Um Senhor Notável' pelo selo Baião, novo braço infantojuvenil da Todavia

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quem caminha pelos corredores da literatura infantil já deve ter ouvido o caso de algum livro que não foi aceito por editoras porque os protagonistas não eram crianças. Ou porque a história trazia assuntos delicados, que supostamente devem ser evitados para não desagradar escolas e professores. Ou então porque o final dava medo, não trazia uma mensagem clara, não ajudava a criar um mundo melhor. Ou, mais comum ainda, porque a narrativa não se encaixava nos editais de compras governamentais.

Ilustração de Joanna Concejo para o livro "Um Senhor Notável"
Ilustração de Joanna Concejo para o livro "Um Senhor Notável", de Olga Tokarczuk, lançado pela Baião, selo da Todavia - Divulgação

Num mercado em que a pedagogia contamina a literatura, é mais do que um alívio ter a obra de Olga Tokarczuk publicada para crianças. A Todavia já havia lançado "A Alma Perdida" em 2020, narrativa que é uma parceria da polonesa, que venceu o prêmio Nobel de Literatura de 2018, com a ilustradora Joanna Concejo, sua conterrânea. Agora, com a estreia do selo Baião, braço infantil da editora, é a vez de chegar às livrarias "Um Senhor Notável", também assinado pela dupla.

Nas duas histórias, Tokarczuk não apenas dá um sopro de ousadia e nos relembra que a ficção está sempre a serviço da arte, independentemente da idade do leitor. Mais do que isso, ela chacoalha as estruturas da literatura, faz vibrar o livro para a infância e desafina o coro de quem defende uma produção certinha, edificante, moralizante e sempre benéfica.

Para começo de conversa, o protagonista de "Um Senhor Notável" é de fato um senhor, não um menino ou uma menina. "Era uma vez um homem muito expressivo", escreve a autora logo no início, no qual descreve as feições da personagem, que costuma agradar a todos e ser alvo dos caricaturistas.

"Em geral, as pessoas se lembravam mais do seu rosto —e não de quem era ou como se chamava", continua o texto. Essa é a chave para entender não só o seu nome, Senhor Aparecido, mas os degraus mais profundos de uma obra que critica de forma corrosiva e ácida a nossa sociedade baseada em selfies, superficialidades e egos inflados.

É aqui que pode surgir a famosa pergunta —mas, afinal, isso é um livro para crianças? E é aqui também que aparece a beleza da resposta —pode ser, por que não?

Assim como os romances e outros textos de Tokarczuk, é difícil classificar "Um Senhor Notável". É, sim, um livro para crianças e jovens. Não existe nada de concreto na linguagem ou na trama que impeça a leitura do leitor em formação. Mas o título também pode ser classificado como um livro ilustrado, um conto ilustrado para todas as idades, uma narrativa gráfica, até como uma HQ. Texto e imagens brincam com as diferentes linguagens, sem se importar em se limitar a uma específica.

De tanto tirar fotos e selfies, o Senhor Aparecido descobre que ficou sem rosto. Ao olhar o espelho, percebe que suas feições sumiram, que a cabeça perdeu os contornos. Desesperado —nem tanto pela deficiência repentina, mas principalmente porque deixou de ser amado e reconhecido pelos outros—, ele dá início a uma jornada pelo submundo de mafiosos e traficantes para comprar um novo semblante.

Ilustração de Joanna Concejo para o livro "Um Senhor Notável"
Ilustração de Joanna Concejo para "Um Senhor Notável" - Divulgação

Se a escritora cria uma fábula fantástica e grotesca que borra as fronteiras da literatura, Concejo apresenta ilustrações também sem bordas, feitas a lápis, com limites sempre fluidos. E faz isso de um jeito esperto.

À primeira vista, os desenhos lembram um "photo dump", ou seja, aquela modinha das redes sociais em que pessoas publicam fotografias aleatórias, sem filtros nem grandes explicações. Somos soterrados por ilustrações de famílias posando, crianças em cima de cavalinhos, sorrisos sobre o colo do Papai Noel, paisagens que não fazem muito sentido.

Aos poucos, porém, esse quebra-cabeça visual vai se encaixando na narrativa proposta pelo texto. E, juntos, texto e ilustrações colocam o próprio leitor em xeque. Percebemos logo as intenções do conto fantástico de Tokarczuk. Entendemos que o Senhor Aparecido ama a sua imagem e baseia toda a sua identidade na aparência. Achamos até bom quando a sua face desaparece. Bem feito, pensamos.

Só que as imagens de Concejo não se contentam em imaginar o álbum de fotografias da personagem. Elas mostram silenciosamente que é impossível fugir da civilização do espetáculo e escapar das teias pegajosas das selfies. Se sentimos uma pequena redenção quando o Senhor Aparecido fica sem rosto, o que acontece quando olhamos a galeria de fotos do nosso próprio celular? Como está o feed das nossas redes sociais? E os nossos próprios "photo dumps"? O que está salvo nos smartphones das crianças?

Em "A Alma Perdida", livro anterior da dupla, Tokarczuk e Concejo propõem uma narrativa sobre um homem que perde a sua alma porque anda mais rápido do que ela. Agora, apresentam uma obra sobre um senhor que vê seu rosto se dissolver, desgastado pela avalanche de selfies e pela metralhadora de fotos.

Os livros não entregam uma resposta única para as questões colocadas sobre a mesa, não apresentam um direcionamento pedagógico claro, não são uma narrativa confortável e indulgente. Ao contrário. São metáforas poderosas, cheias de possibilidades de leituras, sobre os labirintos nos quais nos perdemos atualmente —tanto adultos quanto crianças.

Um Senhor Notável

  • Preço R$ 64,90 (64 págs.)
  • Autoria Olga Tokarczuk e Joanna Concejo
  • Editora Baião
  • Tradução Gabriel Borowski

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.