Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros

'Livro ilustrado não é só para crianças, isso me aborrece', diz Nelson Cruz

Indicado ao 'Nobel da literatura infantil', ilustrador leva Guimarães Rosa, Drummond e Brecht a suas obras

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ilustração de

Ilustração de "Aprendiz de Feiticeiro", de Nelson Cruz, que traz poema de Goethe; livro será relançado pela Boitatá Divulgação

São Paulo

"Prepara a marmita do Nelson que a partir de amanhã ele vai trabalhar comigo." A história poderia começar assim, na virada dos anos 1960 para os 1970, com o pai de Nelson Cruz levando o garoto de 12 anos para ajudá-lo no trabalho de pedreiro.

Gago e tímido, o menino tinha acabado de abandonar a escola. Decidira nunca mais passar pelos portões daquele colégio na periferia de Belo Horizonte, em Minas Gerais, onde se sentia deslocado e tentava escapar dos soldados Quirino e Benedito. Os dois costumavam levar os alunos mais levados para um quartinho. Lá, de portas fechadas, castigavam crianças e adolescentes com golpes de espada.

Era o auge da ditadura militar. O AI-5, que fechou o Congresso, suspendeu direitos políticos e pavimentou o caminho para o terror e para o banho de sangue no Brasil, tinha sido decretado cerca de um ano antes pelo general Artur da Costa e Silva.

Mas histórias não são tão lineares e nem sempre começam do início. Esta, por exemplo, poderia ser contada de outro jeito. Em novembro de 2021, no palco da cerimônia online do prêmio Jabuti, o maior troféu literário brasileiro, o imortal da Academia Brasileira de Letras Ignácio de Loyola Brandão abriu o envelope com o nome do vencedor da principal categoria da noite, a de livro do ano, que premia o melhor entre todos os laureados.

"Eu sei ler, mas vai ser complicado: ‘Sagatrissuinorana’", anunciou Loyola Brandão, pausadamente, tentando não errar o título do livro escrito por João Luiz Guimarães, publicado pela editora Ôzé e ilustrado pelo mesmo Nelson Cruz. "É o que sempre apostei quando comecei na ilustração —eu só poderia levar para o público jovem aquilo que me formou, que foi a literatura", disse Nelson no discurso de agradecimento.

Retrato do ilustrador e artista plástico Nelson Cruz
Retrato do ilustrador e artista plástico Nelson Cruz, indicado ao Hans Christian Andersen - Divulgação

A obra premiada, que reconta a fábula dos três porquinhos à moda de "Sagarana" e de João Guimarães Rosa, fez não apenas com que o menino fugitivo de escolas ganhasse mais um Jabuti para a sua coleção. Ela foi a coroação de um projeto de décadas, nas quais Nelson criou um diálogo visual com diferentes escritores consagrados, apresentando-os e criando releituras em dezenas de livros ilustrados.

Guimarães Rosa aparece também em "No Longe dos Gerais" (Cosac Naify, 2004); Carlos Drummond de Andrade, em "A Máquina do Poeta" (SM, 2015); Graciliano Ramos, em "Um Escritor na Capela" (SM, 2016); Bertolt Brecht, em "Se os Tubarões Fossem Homens" (Olho de Vidro, 2018); Goethe, em "O Aprendiz de Feiticeiro" (Cosac Naify, 2006); Murilo Rubião, em "O Edifício" (Positivo, 2016), Machado de Assis, em "Conto de Escola" (Ciranda Cultural, 2020). A lista segue com tantos outros.

Todas essas edições aparecem nas livrarias em seções de livros infantojuvenis, direcionados para crianças e adolescentes. Mas há controvérsias.

"Chega de pensar que o livro ilustrado é só para crianças, isso me aborrece profundamente", afirma Nelson, em conversa por vídeo feita de sua casa, em Santa Luzia, a 18 km de Belo Horizonte. "No mundo todo, esse tipo de livro cria diálogos através das imagens. O adulto brasileiro precisa voltar o seu olhar para essas histórias."

Os livros de Nelson Cruz se equilibram justamente no terreno instável entre a criança, o adolescente e o adulto. São obras que subvertem os clichês do livro infantil —elas não facilitam, não trazem uma moral edificante, evitam o tatibitate, não são didáticas e muitas vezes enveredam por uma estética sombria, nada colorida, fofa ou alto-astral.

"O mundo que nós, adultos, estamos produzindo é assim. Se nós estamos estragando o mundo, temos que dizer isso para as crianças também", conta o escritor e ilustrador.

Ilustração de "Se os Tubarões Fossem Homens", de Nelson Cruz
Ilustração de "Se os Tubarões Fossem Homens", de Nelson Cruz - Divulgação

Tudo isso tem a ver com aquela fuga da escola. Depois de saber que o menino estava trabalhando como pedreiro, uma amiga da mãe de Nelson conseguiu uma bolsa de estudos para ele, que já demonstrava talento para o desenho, ter aulas com a artista plástica Esthergilda Menicucci. Para ir até o ateliê da professora, o rapaz cruzava a capital mineira, da periferia até o bairro da Savassi, às vezes de ônibus, muitas vezes a pé. Foi nesse caminho que cruzou com a Biblioteca Pública.

"Não tive coragem de entrar imediatamente. Foi na terceira ou quarta vez que decidi ir lá e perguntar se eles tinham livros de arte e sobre pintores", lembra. No terceiro andar do prédio, projetado por Oscar Niemeyer e inaugurado em 1954 pelo então governador Juscelino Kubitschek, Nelson devorou volumes e mais volumes sobre nomes como Michelangelo, Leonardo Da Vinci, Pablo Picasso, Candido Portinari e Di Cavalcanti.

Foi um pulo até a seção de jornais e, mais tarde, até a de literatura. "Foi quando me tornei leitor. Descobri Fernando Sabino, Henriqueta Lisboa, Drummond, Vinícius de Moraes. Tive a sensação de que a escola não tinha saído de mim."

De certa forma, esse aprendizado autodidata e não linear é o que conduz a obra de Nelson Cruz nas décadas seguintes, quando trabalhou como artista plástico, ilustrador na imprensa e autor de livros ilustrados. Assim como ele mergulhou nos versos de Drummond aos 12 anos sem qualquer contexto ou mediação, crianças e adolescentes têm a mesma sensação de desorientação e alumbramento ao ler suas narrativas. São livros-descoberta.

Muito por causa disso, ele foi escolhido para representar o Brasil na disputa pelo prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil. Ele está indicado na categoria para ilustradores, enquanto Marina Colasanti disputa entre os escritores. O país têm premiados: Lygia Bojunga venceu em 1982; Ana Maria Machado, em 2000; e Roger Mello, em 2014. Os próximos ganhadores serão anunciados no ano que vem, durante a Feira de Bolonha, na Itália.

"O resultado do meu ofício é o livro. O prêmio é o resultado do ofício de outras pessoas. Quando a gente se encontra, eu fico muito feliz. Principalmente porque me propus a fazer um projeto em que o ilustrador tem a assinatura de autor —e não é um mero prestador de serviços", diz Nelson. "Quando saiu o resultado do Jabuti de livro do ano, por exemplo, foi uma realização. Mostrou para mim mesmo que eu não estava errado."

Ilustração de Nelson Cruz para "Conto de Escola", de Machado de Assis, publicado pela Cosac Naify - Divulgação

Ainda neste ano, "O Aprendiz de Feiticeiro", que traz poema de Goethe que inspirou o clássico "Fantasia", de Walt Disney, será relançado pela editora Boitatá, depois de uma primeira edição esgotada da extinta Cosac Naify. Também da Cosac, "No Longe dos Gerais" será republicado em breve pela Ôzé –o título é resultado de viagens feitas por Nelson, nas quais refez os passos de Guimarães Rosa pelo interior de Minas Gerais, quando o autor acompanhou uma boiada e teve contato com o universo sertanejo que o inspiraria a escrever "Grande Sertão: Veredas".

"O caminho que escolhi foi esse. Vou sempre dar trabalho para as crianças e para os pais. E para os jovens também. Se você colocar um celular na mão de um adolescente, ele vai destrinchar aquilo em instantes. Então ele é capaz também de lidar com a literatura. É por isso que não faço muitas concessões. A provocação é mais interessante do que navegar num mar de aceitações."

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.