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É preciso não depender das big techs, afirma pesquisador de plataformização do trabalho

Para Rafael Grohmann, da Universidade de Toronto, regulação não basta e Estado precisa impulsionar cooperativismo de plataforma

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Buenos Aires

Dados do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) apontam que o Brasil tem ao menos 1,7 milhão de trabalhadores na economia de plataforma [gig economy, no termo em inglês], ou seja, que trabalham para apps de entregas e de transporte por aplicativo, dentre outros.

A pandemia e a crise econômica aumentaram esse número, que é subdimensionado, uma vez que há trabalhadores "invisíveis" em fazendas de cliques ou de treinamento de ferramentas de inteligência artificial.

fotografia mostra tela de celular preenchida pelos ícones coloridos de aplicativos que funcionam por Inteligência Artificial
Ícones de aplicativos de IA em celular - Oliver Morin/AFP

Em maio deste ano, o governo criou um grupo de trabalho para discutir a regulamentação das atividades por aplicativos de entrega e transporte, como iFood, Uber, 99 e outros.

Após quatro meses de negociação, não se chegou a um consenso. Em reunião nesta terça-feira (12), representantes dos profissionais de entrega deixaram o local em discordância com as propostas apresentadas pelas empresas. Há ameaças de paralisação.

O #Hashtag entrevistou o pesquisador Rafael Grohmann, professor de Estudos Críticos de Plataformas da Universidade de Toronto, no Canadá, especialista em plataformização do trabalho e que integrou conversas desse grupo de trabalho.

"Eu não tenho esperança de que a gente vai conseguir uma regulação adequada. O lobby das empresas, que envolve a estratégia de comunicação, a limpeza de imagem, as portas giratórias [funcionários de empresas no governo], é muito forte em termos de levar a opinião pública para o lado delas", afirma.

Grohmann é líder do DigiLabour e do Observatório do Cooperativismo de Plataforma e pesquisador do projeto Fairwork, que lançou um relatório no mês de julho sobre as condições de trabalho no Brasil.

O que o projeto Fairwork constatou?

O projeto Fairwork avalia 38 países com o princípio de trabalho decente. A América Latina é a pior região na pontuação das plataformas. Isso ressoa nas ruas, nos debates em relação à regulamentação, especialmente na remuneração, do quanto não se considera os custos para o trabalho, como internet e manutenção de veículos.

O tempo de espera é uma discordância entre o que pensam os trabalhadores e o que pensam as empresas. Para as empresas conta só o tempo efetivo que o trabalhador começa uma corrida e o momento que termina. Para os trabalhadores o tempo que ficam esperando conta como tempo de trabalho, afinal, têm que estar disponível.

Qual é o perfil desses trabalhadores?

Existem diferentes perfis, a depender do setor e do país. No Brasil, por exemplo, os entregadores em geral são jovens, negros, homens. No trabalho doméstico, mulheres, que também são maioria nas fazendas de cliques e nas anotações de dados para inteligência artificial.

Trabalhadores e motoristas são a ponta do iceberg da plataformização do trabalho, que envolve quem trabalha na casa de outras pessoas, anotação de dados para inteligência artificial, revisão de conteúdo, fazendas de cliques, entre outras.

Influenciadores e criadores de conteúdo também dependem das plataformas. Há um movimento das trabalhadoras sexuais. No Brasil se fala muito do Only Fans. A plataformização do trabalho vale para toda atividade, independente da plataforma. Em termos geopolíticos, a gente tem observado que a maior parte das plataformas são do Norte e a maior parte dos trabalhadores, do Sul.

No começo do ano, quando o ChatGPT tinha acabado de ‘viralizar’, descobriu-se que a OpenAI usava trabalhadores no Quênia para treinar a ferramenta, pagando menos de dois dólares por hora.

Já vinha há algum tempo esse reconhecimento de que a inteligência artificial não era tão artificial, que dependia de trabalho humano. Não dá para dizer que é inteligente um algoritmo com um carro automático que atropela mais pessoas negras do que brancas por racismo algorítmico.

Está vindo do Quênia o primeiro sindicato dos moderadores de conteúdo. Tem algo acontecendo em termos de como os trabalhadores estão se organizando. A Amazon Mechanical Turk, que é a plataforma mais conhecida de anotação de dados para IA, criada pelo Jeff Bezos em 2005, reconhecia que há trabalhadores humanos na inteligência artificial. Isso resultou no sindicato dos trabalhadores da Amazon.

O ano de 2023 ficará marcado como o da popularização da inteligência artificial. Qual o impacto disso?

Antes era uma questão de nicho e agora massificou essa preocupação de quem são esses trabalhadores. No Brasil, por exemplo, os que alimentam inteligência artificial não estão contemplados na regulação do trabalho por plataformas. O governo federal está focado em entregadores e motoristas. Ou se dá condições para eles executarem o trabalho de maneira digna ou isso vai trazer bancos de dados de IA cada vez piores.

O quanto a gente imagina que a IA funciona como algo perfeito tem a ver com certo imaginário quase hollywoodiano, desde os "Jetsons" até "Her" [filme de 2013 com Joaquin Phoenix], de como a mídia acaba criando uma visão distorcida de IA. Tem um site muito legal chamado Better Images of AI [imagens melhores de IA, em tradução livre], que reconhece que a maior parte das imagens de IA são irrealistas, e se compromete a criar uma imagem mais realista sobre IA. Isso ajuda no processo de popularização, de saber como as coisas funcionam.

Qual o cenário da regulação dessas plataformas hoje?

No Brasil, a primeira questão é como se enquadra, porque tem a regulação das plataformas de mídias e a regulação do trabalho de plataformas. A segunda questão é conceitual.

Plataformas são empresas, não é só uma questão tecnológica ou de intermediação, mas de subordinação e controle de trabalhadores. No Brasil, criou-se um GT [grupo de trabalho] entre governo, trabalhadores e empresas para discutir essa questão e tentar chegar a consensos. Mas esses consensos não estão sendo criados. Tem muita pressão, principalmente por parte das empresas, para ficar numa regulação mínima, ou que seja focada numa questão previdenciária, sem entrar em direitos trabalhistas.

Eu não tenho esperança de que a gente vai conseguir uma regulação adequada. O lobby das empresas, que envolve a estratégia de comunicação, a limpeza de imagem, as portas giratórias [funcionários de empresas no governo], é muito forte em termos de levar a opinião pública para o lado delas.

Há alternativas além da regulação?

A gente tem batalhado para dizer que a regulação é importante, mas não basta. É preciso construir circuitos para não depender das big techs, que têm sido chamados de cooperativismo por plataforma [ou plataformas controladas por trabalhadores, ou plataformas alternativas]. Tem acontecido isso no mundo todo, desde plataformas de streaming cooperativas até federação de cooperativas de entregadores de aplicativos na Europa compartilhando o mesmo software para ser atendido pela cooperativa.

Algumas cidades, como o Rio de Janeiro, têm criado seu próprio Uber. Isso é uma solução?

Há um certo fetichismo tecnosolucionista "vamos criar um aplicativo e a gente resolve os problemas da nossa cidade". Não é assim que as coisas funcionam.

É preciso pensar o papel do Estado em relação ao apoio ao cooperativismo de plataforma. Não é o Estado tendo propriedade dessa plataforma, mas em como ele pode impulsionar essa questão. Um dos problemas da economia de plataforma é o efeito de rede, que as pessoas vão todas para um aplicativo só.

A resposta cooperativa para isso não é cada um tendo seu próprio aplicativo, mas construir federações e infraestruturas compartilhadas. O Brasil pode ser pioneiro. O mundo todo está discutindo regulação e pouca gente está discutindo alternativas que não dependam de big tech. E o país tem um histórico forte em economia solidária, cultura livre, software livre, não está nascendo em terra arrasada, tem um parque tecnológico gigantesco nas universidades públicas.

E como está a organização dos trabalhadores?

Essa organização é sempre complexa e contraditória. Um exemplo é as fazendas de cliques, um setor com trabalhadores na informalidade. As pessoas descobriam essas plataformas por meio de canais no YouTube, com coaches com o discurso de "ganhe dinheiro fácil". Certo dia um desses coaches fez um vídeo convocando uma greve. Isso mostra que onde não há nenhuma organização surge uma.

Num momento de plataformização dos protestos, você tem uma série de mobilizações de trabalhadores com muito barulho, mas não necessariamente resulta em organização de trabalhadores, algo que é mais lento, mais invisível. Existe um desafio de como se pensar um sindicalismo renovado e de como reconhecer as diferentes formas de organização de trabalhadores para além dos sindicatos tradicionais, que foi emergindo nos últimos anos, como coletivos e associações.

RAIO-X

Rafael Grohmann, 35, natural de Guaratinguetá (SP). É professor de Estudos Críticos de Plataformas da Universidade de Toronto, no Canadá. Atualmente coordena projetos sobre plataformas de propriedade de trabalhadores e interseccionalidades na América Latina e sobre políticas públicas para plataformas e economia solidária na América Latina. É autor dos livros "Os Laboratórios do Trabalho Digital" (Boitempo, 2021) e "Trabalho por Plataformas Digitais: uma introdução crítica" (Edições Sesc, no prelo).

Retrato de homem branco visto da cintura para cima. Ele é um homem branco, jovem, de cabelos pretos, lisos e compridos, e tem barba estilo por fazer
O pesquisador Rafael Grohmann, professor de Estudos Críticos de Plataformas da Universidade de Toronto, no Canadá, especialista em plataformização do trabalho - Divulgação

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