Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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A morte nas letras de Gilberto Gil

Músico baiano faz 82 anos nesta quarta, dia 26 de junho

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Nasci em 1984.

Em 1984, o carnaval do Rio de Janeiro acontecia pela primeira vez na Marquês de Sapucaí. As "Diretas Já" faziam seus principais movimentos, Senna estreava na Fórmula 1 e a banda brasileira mais famosa do mundo, Sepultura, estreava nos palcos.

Também em 1984, Gilberto Gil lançava o álbum Raça Humana. É dele uma de suas músicas mais conhecidas, "Tempo Rei".

"Tempo Rei" é sua versão para o que, na canção "Oração ao Tempo", de Caetano Veloso, está descortinado na frase "E quando eu tiver saído... para fora do teu círculo... não serei nem terás sido". Gil conta que "na música de Caetano parece haver um niilismo essencial, um mergulho no nada absoluto e uma resignação plena, orgulhosa e altiva com a extinção. Na minha tem uma coisa mais cristã: uma, quem sabe, quimera: um vago desejo de permanência e de transformação".

"Tempo Rei" é uma música sobre a morte, assim como várias outras letras escritas por Gilberto Gil. Acho que ainda não tinha me dado conta disso até buscar referências em sua música para fazer uma dedicatória para ele em um livro que escrevi.

Brazilian musician Gilberto Gil gestures during a panel of the Web Summit Rio 2024 at the RioCentro Expo Center in Rio de Janeiro, Brazil on April 17, 2024. The Web Summit Rio brings together key figures in the technology and innovation sectors, alongside industry executives. (Photo by MAURO PIMENTEL / AFP) - MAURO PIMENTEL/AFP

Resolvi ouvir as canções enquanto pensava no que dizer. "Não me iludo/ Tudo permanecerá do jeito/ Que tem sido", canta Gil. Pensei logo em Santo Agostinho e em seu "A morte não é nada": "Eu sou eu, vocês são vocês. O que eu era para vocês, eu continuarei sendo". Uma forma de dizer que a morte não nos extingue, ao menos não enquanto existir uma única pessoa que se lembre de quem tivermos sido.

Por outro lado, Gilberto Gil também nos lembra que "Pensamento/ Mesmo o fundamento singular do ser humano/ De um momento para o outro/ Poderá não mais fundar nem gregos, nem baianos". E alerta para que não nos iludamos, porque tudo agora mesmo pode estar por um segundo. Tempo rei, ó tempo rei.

Consta que sei disso desde os sete anos, quando decidi que minha filha se chamaria Beatriz – e chama -, porque "para sempre é sempre por um triz".

Aliás, "Feliz por um triz" é o nome de outra canção daquele mesmo álbum do Gil de 1984, com uma letra dificilmente tão atual quanto é agora. "Mal escapo à fome/ Mal escapo aos tiros/ Mal escapo aos homens/ Mal escapo ao vírus".

Quando me ocorreu que a morte estava presente em tantas letras da extensa obra do músico baiano, fiz uma pesquisa no Google, imaginando que muito já teria sido publicado sobre isso. Encontrei apenas um artigo sobre a morte e o morrer a partir da canção "Não tenho medo da morte".

Nesse artigo, os pesquisadores Hudson Azevedo Pinheiro, Rosane Maiara Itacaramby da Silva, Samara Marília Rodrigues Araújo e Letícia Meda Vendrusculo Fangel dizem que falar sobre morte "é falar do que se está fazendo, do que não se fez, de planos, sonhos, perdas, do tempo que já se foi, e do que ainda resta. A morte do outro traz uma lembrança da própria morte, e nisso consiste a dificuldade das pessoas em dar àqueles que morrem a ajuda e a afeição que tanto necessitam ao se despedir dos outros".

Gil canta que não tem medo da morte, mas de morrer, que é enquanto ainda pode haver dor. Penso que, 40 anos atrás, quando nasci, o compositor já antecipava o que estudo agora. Dá para morrer sem dor. Na verdade, dá para viver sem dor até o fim da vida, na maioria dos casos, se houver a democratização do acesso ao que chamamos de Cuidados Paliativos. Acho que Gil anunciou a importância dos Cuidados Paliativos 40 anos antes de se tornarem uma política nacional.

O compositor diz que, se quiser falar com Deus, "Tenho que me aventurar/ Tenho que subir aos céus/ Sem cordas pra segurar". Caminhar pela estrada que, ao findar, vai dar em nada do que pensava encontrar… e eu me pergunto, é essa uma definição para a morte ou para a vida?

Gilberto Gil afasta o senso comum de que falar da morte a atrai para perto, ao cantar que ela é rainha que reina sozinha e que não precisa do nosso chamado pra chegar. Isso em uma outra canção, que usa o nome da própria e artigo definido: "A Morte".

Como pode, Gil? Como pode ser a morte um tabu no país que cresceu sob sua música a nos lembrar que "Os homens são mortais/ Todos os animais/ Os vegetais também o são", como você escreveu em "No céu da vibração"?

Esquecendo que morremos, esquecemos que "o melhor lugar do mundo é aqui e agora", canção que elegi para reger a vida desde que minha filha nasceu e o tempo rei passou a correr mais veloz do que nunca. "Aqui fora de perigo/ Agora dentro de instantes", aqui no agora, único momento com a garantia indelével de que ainda não acabou a nossa existência. No segundo seguinte, já não se sabe.

Na tentativa de escrever uma dedicatória com sentido, descobri canções que ainda não conhecia. Encontrei referências sobre morrer em várias delas. E sobre o depois do morrer, como o luto que leio em "Toda Saudade", essa presença da ausência de alguém.

Acho que a primeira música de Gilberto Gil que tocou meu coração, ainda na infância, também tem a ver com morte. Seria sobre isso que ele fala com Cazuza, quando anuncia o Cristo com braços abertos sem proteger ninguém? Para onde vai o trem para as estrelas senão para as estrelas, afinal?

Marina Lima, Gilberto Gil, Lulu Santos e Cazuza
Marina Lima, Gilberto Gil, Lulu Santos e Cazuza - Lita Cerqueira/Divulgação

Não foi proposital terminar este texto na data do aniversário de 82 anos de Gilberto Passos Gil Moreira, já tem muitos meses que penso em escrevê-lo. Acho que foi apenas uma coincidência consciente. E entendo se alguém pensar que não é boa ideia publicar sobre morte quando se celebra a vida.

Mas o próprio Gil disse que, logo cedo, teve a percepção de que a morte faz parte da vida. Não que seja fácil lidar com o desaparecimento físico de alguém, nunca é. Mas a finitude é parte do nosso material humano e nos cabe lidar com ela. A obra eterna de Gilberto Gil dificilmente seria a mesma se ele não pensasse assim. Celebro sua obra e celebro sua vida.

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