Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Rede de apoio para morrer é tão importante quanto para nascer

Apoio de amigos e família é importante nos nascimentos e também nos lutos

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Jéssica Moreira

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia

São Paulo

Há alguns meses o pai de uma amiga-irmã morreu, após anos tratando um câncer. Uma das coisas que mais me perguntei nesse processo perto da Cecília foi: como poderia ajudá-la sem atrapalhar? Mesmo refletindo muito sobre morte e o processo de luto – também por ter vivido alguns deles nos últimos anos – olhar o processo de finitude e do luto ao seu redor sempre é algo novo e confuso.

Já li muitas dicas sobre como apoiar o enlutado. Há coisas muito importantes, mas também frases prontas que, no fim das contas, nem sempre funcionam. "Diga sinto muito no lugar de meus pêsames". Parece mais perto do sentimento, realmente. Mas quando você não tem uma conexão real, uma escuta de verdade, não tem palavra que dê conta de abraçar verdadeiramente esse momento.

No dia que meu pai morreu, uma amiga me mandou uma frase que marcou: "quando minha mãe morreu, nenhuma palavra ajudava, o que ajudava muito eram os abraços, então, te mando meu abraço". Era como se eu tivesse sentindo toda a energia emanada por ela, ainda que dentro de uma mensagem de rede social.

Partindo do princípio de que a gente não sabe mesmo o que falar, nem o que fazer, o que dizer e o que fazer, então?

Dentro de todas as dicas que já vi, dos especialistas e livros que consultei, uma coisa estou certa: a rede de apoio na hora da morte é tão fundamental para uma pessoa quanto a rede que se forma (ou deveria se formar) quando uma criança vem ao mundo.

Dias antes do pai de Cecília morrer, o filho de uma grande amiga dela nasceu. Ela e outras pessoas se uniram para prover e organizar tudo que a criança e a família precisariam nesse primeiro mês do pequeno no mundo. Descobri que isso recebe um nome: seva. Chamada de seva do puerpério por alguns e seva de resguardo por outros, a ideia vem da Kundalini Yoga e simboliza a formação de uma rede de pessoas para servir a criança e a família nos seus primeiros 40 dias no mundo.

Segundo a Abaky (Associação Brasileira dos Amigos de Kundalini Yoga), a seva significa "Serviço altruísta ou trabalho exercido sem expectativas de recompensas. É a arte de dar sem qualquer necessidade de receber em troca". A circulô, uma rede de apoio para maternidades, tem até umas dicas de como se manter próximo nesse momento. Em algumas culturas e religiões, é comum encontrar esse tipo de rede de apoio aos enlutados, ao oferecer as primeiras refeições ou apoio com burocracias.

A rede de apoio para o nascimento e ao longo da primeira infância é extremamente importante. "A chamada rede de apoio é a rede de cuidados – o conjunto de pessoas, instituições, políticas públicas, que, unidas, garantem as condições necessárias para o desenvolvimento da criança", aponta a especialista em infância Mayara Penina em reportagem especial sobre maternidade no Nós, mulheres da periferia:

"Este cuidado, atenção e possibilidade de apoio precisa ser garantido às crianças e suas famílias desde a gestação. A teoria bioecológica do desenvolvimento humano, da qual [a especialista] Juliana Prates é estudiosa, afirma que o desenvolvimento acontece em contexto, ou seja, ele é fruto das interações entre o sujeito e o ambiente onde as crianças têm contato com sua rede desde a gestação. As condições estruturais que serão dadas antes do nascimento é que vão favorecer ou prejudicar o desenvolvimento na primeira infância, período essencial para toda a vida. Isso significa as condições de pré-natal, de nascimento, o direito à licença maternidade, ao aleitamento exclusivo em função da licença maternidade remunerada".

Contei para Mayara nessa mesma reportagem quão importante foi viver em uma comunidade forte, cheia de pais e mães, e quanto isso me fez mais aberta às diferenças dos grupos que integrei posteriormente. Mas o que eu nunca havia pensado é que essa mesma rede familiar foi também apoio e colo na hora da morte.

Como disse Helena Cunha Di Ciero em texto publicado aqui no Morte Sem Tabu: tem um ditado africano que diz que é preciso uma aldeia para criar uma criança, que não é algo que se faz sozinho. Foi preciso uma aldeia para me ajudar a me despedir da minha mãe ".

Meus primos e tios nos acompanharam dia e noite enquanto meu pai estava internado. Eles se revezavam conosco no hospital, mas outras pessoas também cuidavam da comida ou dos afazeres domésticos. Meu tio João, que foi coveiro (ou sepultador) por muitos anos, foi prático e rápido em todo o processo para o sepultamento. Ter alguém que fala sobre morte sem rodeios e que entende sobre burocracias é bem importante nessas horas.

Tenho essa sorte de ter crescido em uma família muito generosa, envolta a muito amor. Mas muitas vezes é a rede de amigos que precisa ser esse apoio, ainda mais se a família também está fragilizada diante do processo de luto.

Em meio a muitas perguntas, nos juntamos para entender como apoiar a Cecília. Pensamos em visitá-la. Mas sabíamos que ela ficaria desconfortável, pois não estava com energia para "fazer sala" como gostaria. Isso poderia atrapalhar mais do que ajudar. Pensamos em mandar flores e plantas. Mas naquele momento elas também exigiriam algum cuidado. Quem estava precisando de cuidado era ela e a família. Resolvemos seguir uma linha mais prática: enviar marmitas que tirassem delas o peso de ter que cozinhar naqueles dias.

Acho que acertamos. Mas isso não quer dizer que as outras opções não são válidas. E é aí que quero chegar: tentem ouvir com atenção, ter sensibilidade para ler o contexto no qual a pessoa em luto está. Quando a gente diz que nenhum luto é igual, isso é a pura verdade.

Existe um tabu muito grande em torno da morte em nossa sociedade. A maioria das pessoas acredita que a morte é ruim, algo a ser evitado. Então, me parece que se tornar rede de apoio de uma mãe e um bebê parece mais factível, seguindo um curso comum de que você vai apoiar alguém a crescer, a viver. (embora, muitas vezes, não seja tão simples assim. A nossa autora Cynthia Araújo refletiu sobre o luto do desmame na semana passada).

Já a rede de apoio em torno do enlutado segue uma linha menos reta. Talvez porque dá medo se colocar tão próximo dessa dor, que a qualquer momento pode ser nossa, pode atravessar nossa família. Talvez porque o nascimento seja entendido como alegria e vida. E a morte como fim, que deve ser aceito sem questionamento, pois não tem como reverter.

Não há regras para ajudar. E sei que você não quer atrapalhar e respeitar o momento da pessoa e de sua família. Mesmo que não saiba ao certo o que fazer, tente estar perto e disponível de algum modo. Procure por outros grandes amigos e faça um grupo, crie uma rede. Juntos vocês podem entender melhor por onde seguir.

Para te apoiar, separei aqui uma série de ensinamentos que nós acumulamos aqui no Morte sem Tabu nesses quase dez anos de blog, a partir de entrevistas com enlutados e especialistas no tema. Se tiver mais alguma dica, ou dúvida, deixa aqui nos nossos comentários. Um abraço forte em quem está passando por isso.

Como ajudar uma pessoa em luto: comece não atrapalhando
Não há uma receita sobre como ajudar uma pessoa enlutada, por ser um processo individual, mas algumas recomendações podem ser feitas. Eleonora Jabour disse que a melhor forma de ajudar é não atrapalhar o processo do outro. "Costumamos ficar muito angustiados com o sofrimento de quem está perto e, para acalmar essa nossa angústia, tentamos aplacar a dor do outro, usando frases como "vai ficar tudo bem", "vamos sair, pensar em outra coisa". Queremos que o outro sofra menos. O resultado disso pode ser ruim, porque a pessoa sente que não pode ter esse espaço de dor. A intenção é ótima, você quer dizer "tenha esperança", mas ela não está, necessariamente, sentindo isso naquele momento. O efeito pode ser oposto e essa pessoa acabar se sentindo na obrigação de estar bem".

Luto como uma questão de saúde pública
Nesse texto, Gabriela Casellato diz: "escutar com atenção, respeitando a dor do outro com empatia é um bom começo". Entenda que o enlutado não precisa de uma frase de efeito ou conselho, mas sim sentir que sua dor é válida e entendida pelo outro. Perguntar o que está precisando, abrir espaço para o enlutado poder se expressar também é uma possibilidade. Para além de ajuda emocional, é possível oferecer ajudas como ir ao supermercado, trazer um prato de comida.

Finados e memória: a comida como forma de homenagem
No filme "Viva: a vida é uma festa", as famílias mexicanas aparecem homenageando seus mortos com um lindo altar onde há fotos e pratos preferidos de quem morreu. O Dia de Finados pode ser uma oportunidade de celebrar nossos mortos, mesmo que seja na intimidade de nossas casas, entre uma refeição e outra.

Música nos velórios: uma forma de abraço
A cerimonialista aborda a família e informa que há o serviço de música. Em alguns cemitérios, esse serviço é contratado à parte.. Ele e outros músicos que se revezam tocam duas ou três músicas ao fim dos velórios e atendem outros pedidos da família, como a leitura de mensagens. Depois, os coveiros entram, fecham o caixão - eles preferem chamar de ataúde -, que segue para o sepultamento ou para o crematório.

Carta aos filhos do Pelé
Nunca estamos preparados para o fim. Podemos ler todos os textos, até nos especializamos na temática da morte e seus processos, mas quando ela chega, atravessa tudo. O tempo e o espaço ficam suspensos, congelados. Exigindo de nós, filhos de pais que morreram, renascer e reinventar um mundo sem eles.

Como falar sobre morte com as crianças?
Temos alguns conteúdos que dialogam sobre conversas sobre morte e luto com crianças. A psicóloga clínica especialista em luto, Ana Lúcia Naletto, explica quão importante é falarmos sobre o tema com as crianças, principalmente para ajudá-las a nomear o que está acontecendo à sua volta. Sobre a constante dúvida em utilizar o termo morte — considerado pesado por alguns — ou metáforas, a psicóloga aponta o primeiro como a melhor opção. Ela explica que o adulto precisa lembrar de ser didático e compreender a concepção que a criança já tem sobre o assunto. "Fazer perguntas como ‘você sabe o que é morte?’ ou ‘você sabe o que é morrer?’ são recomendadas, seguidas de explicações: "dizer que morrer é quando o coração para de funcionar ou quando uma pessoa não sente mais frio e que a pessoa não irá voltar". Em 2011, a psicóloga Lucélia Paiva lançou o livro "A arte de falar da morte para crianças", pela editora Ideias e Letras, já na terceira edição. O livro é resultado da pesquisa de sua tese de doutorado na USP, onde entrevistou 54 educadores. Lucélia acredita ser fundamental falar de morte com as crianças porque ela permeia o universo infantil e seu cotidiano. Elas entram em contato com o tema através de notícias, dos desenhos animados (que sugerem a imortalidade, quando Pica Pau é atropelado, vira papel e logo volta ao normal) e dos vídeo-games (onde é possível driblar a morte).

21 livros sobre luto: uma lista para se ter por perto
Selecionamos algumas leituras que fizemos sobre o tema, tanto mais antigas quanto as mais recentes e dividimos com vocês nesta lista. Há diversos livros sobre luto e como passar por esse momento.

Luto: uma montanha russa de sentimentos inéditos que exigem respeito
"Uma das coisas que ficou clara para mim é a questão da atemporalidade, do tempo individual do luto. É normal a gente sofrer dois anos depois, ou seis anos depois. Mês sim, mês não. Cada um tem seu tempo. Não existe uma planilha de Excel com as etapas do luto para você seguir. Outra coisa que se destacou foi a importância de escutar o enlutado. Muitas vezes, a gente não tem o que dizer para uma pessoa que está em sofrimento. Mas só de escutar e propor espaços onde a pessoa possa falar, é muito útil. O enlutado quer falar, quer ser ouvido".

Reflexões de pessoas enlutadas
No Morte Sem Tabu, também temos uma série de textos, como cartas e depoimentos que recebemos de pessoas enlutadas que contam como lidam com esse processo. Há diversas homenagens feitas a entes queridos. As homenagens também são uma das formas de lidar com esse momento. Confira: A urgência de vida em mim: 7 anos sem meu pai, Um ipê branco para meu pai, Primeiro Dia das Mães sem ela, Como se ama na ausência: uma homenagem de filho para pai, Depoimentos de luto no natal, Quando a mãe das minhas filhas morreu, Ressignificando o luto em um largo quintal de memórias.

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