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Normalitas - Susana Bragatto
Susana Bragatto

Meses após aprovação, Espanha reforma lei contra violência sexual

Nova versão da lei, uma das mais avançadas da Europa, foi aprovada nesta última quinta-feira (20); oposição classifica de 'retrocesso'

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Nesta última quinta-feira (20), o Congresso espanhol aprovou definitivamente, por 233 votos a favor, 59 contra e 4 abstenções, a polêmica reforma da Lei Orgânica de Garantia Integral da Liberdade Sexual, popularmente apelidada de "Só Sim é Sim" ("Solo el Sí es Sí").

O texto original, considerado um dos mais avançados da Europa, levava apenas 8 meses em vigência, e foi modificado novamente, entre outros motivos, como uma resposta a um efeito colateral inesperado: desde sua aprovação, em agosto de 2022, mais de mil agressores condenados tiveram suas penas reduzidas, e uma centena destes obteve a liberdade, graças a brechas legais que permitiram a revisão de sentenças.

Foto em preto e branco mostra mão de mulher
Crédito: Pixabay/Reprodução - Pixabay / Reprodução

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Entre os precedentes que levaram à elaboração do projeto de lei, talvez o mais emblemático seja o caso da "Manada".

Assim se autodenominavam os cinco jovens que, em julho de 2016, em plenas festas de San Fermín em Pamplona, encurralaram e violaram em um beco uma jovem de 18 anos.

Interpretado como abuso, o caso gerou uma série de protestos na Espanha e em toda a Europa. Com a repercussão, a tipificação mudou, anos depois, para agressão sexual e as sentenças dos réus foram revistas e ampliadas.

O cerne da discussão em torno do caso Manada residia na questão do consentimento: o principal argumento da defesa era de que se tratou de um ato consentido por parte da jovem, supostamente sem uso de violência.

Somente em 2019, graças à pressão popular e à revisão do Supremo Tribunal, o caso foi reenquadrado como agressão sexual, e as penas passaram de 9 a 15 anos de prisão.

Detalhe: quatro dos condenados já possuíam um precedente de agressão sexual contra uma jovem em Córdoba em 2016, e foram julgados também por este crime em 2019.

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POR QUE A LIBERAÇÃO DE PRESOS COM A NOVA LEI?

O ponto mais discutido e esperado da "Solo el Sí es Sí" original era o fim da distinção entre abuso e agressão sexual.

Com a nova lei aprovada em agosto de 2022, toda interação sexual sem consentimento, envolvendo ou não resistência ou violência de qualquer tipo, passou a ser considerada agressão, e o abuso sexual foi, na prática, eliminado do Código penal espanhol.

O texto legal especificava que "só se entenderá que há consentimento quando este tiver sido livremente expressado por meio de atos que, diante das circunstâncias do caso, expressem claramente a vontade da pessoa".

Imediatamente após sua aprovação, porém, uma enxurrada de apelações levou à reavaliação de vários casos de agressão. Advogados de defesa aproveitaram a lacuna entre a antiga e a nova lei e certas penas reduzidas especificadas no novo texto para casos particulares a fim de pedir a redução das condenações e, em alguns casos, a libertação dos agressores, o que levou a uma onda de revolta popular.

Entre as polêmicas geradas pela nova lei, alguns juízes levantaram dúvidas sobre a questão da presunção de inocência: teriam os acusados que provar, agora, o consentimento prévio da vítima?

O partido de ultradireita Vox, que se absteve de participar da votação da última quinta-feira, também se opôs ao projeto de lei original, argumentando que era "sectário" e que poderia abrir um precedente de "denúncias falsas" para obtenção de benefícios, como no caso de imigrantes sem papéis.

Com seu enfoque no apoio às vítimas, porém, a nova lei foi comemorada como uma importante – e longamente esperada -- conquista por diversos setores. O que antes era "não é não" passou a ser "apenas sim é sim", e isso mudou tudo.

Em um universo judicial em que frases difusas como "não disse que não", "estava alcoolizada" ou "estava pedindo" dificultam, intimidam ou desencorajam as denúncias e a exposição dos fatos, o foco na questão do consentimento trouxe um empoderamento importante para as vítimas.

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UMA VÍTIMA A CADA 4 HORAS

Na Espanha, segundo dados de 2021, uma violação é registrada a cada 4 horas.

Ainda assim, de acordo com a última pesquisa sobre Violência contra a Mulher realizada pelo Ministério do Interior, estima-se que essas denúncias correspondam a somente 11% do total de casos.

Entre os motivos mais citados pelas mulheres para não denunciar as agressões, os principais: vergonha (40,3%), o fato de ser menor de idade quando se deu a violação (40,2%), o medo de que não acreditem em seu relato (36,5%) e o medo de retaliação do próprio agressor (23,5%).

O texto da "Solo el Sí es Sí" se inspira na Convenção de Istambul, um tratado internacional que provê diretrizes para políticas relacionadas ao combate e prevenção da violência contra as mulheres, atualmente ratificado pela maioria dos países da União Europeia.

A convenção entende que qualquer relação sexual não consentida deve ser qualificada como agressão.

"CENTROS DE CRISE" E AJUDAS

Na época da aprovação da lei, a ministra de Igualdade Irene Monteiro comemorou: "nenhuma mulher vai ter que demonstrar que houve violência ou intimidação numa agressão para que [esta] seja considerada uma agressão. Reconhecemos todas as agressões como violências machistas".

O caráter progressista da lei, porém, vai muito além. Estabelece e/ou amplia ajudas para vítimas e determina a criação de centros de acolhida em todo o país.

Os chamados "centros de crises" – atualmente, há apenas dois em toda a Espanha, em Madri e Astúrias – estarão por toda parte, funcionarão 24 horas e oferecerão apoio psicológico, jurídico e social a vítimas, familiares e demais pessoas envolvidas em casos de agressão.

Esta e outras medidas foram mantidas na reforma aprovada na última quinta-feira.

REFORMA: "VOLTA" AO MODELO ANTERIOR

A principal mudança – e fonte de renovada polêmica – é a criação de dois subtipos de agressão, uma com e outra sem violência, com penas diferenciadas.

Segundo a oposição, isso representaria um retrocesso, trazendo de volta, na prática, a ideia dual de abuso versus agressão, e abrindo precedente para a atenuação de penas.

"De certa forma, [a nova reforma] é, sim, uma volta ao modelo anterior, ao diferenciar a agressão sexual em função de presença ou não de violência ou intimidação", opinou a professora de Direito Penal da Universidade do País Basco, Miren Ortubay, ao portal Newtral, previamente à aprovação da lei original. "Mas isso não afeta o núcleo da lei, já que o consentimento continua sendo o centro".

"O risco", diz, "é que se siga investigando o que é mais fácil de provar: a violência física sempre é mais fácil de investigar porque é mais evidente".

A professora de Direito Penal da Universidade de Málaga, Patrícia Laurenzo, concorda: "um dos propósitos da lei [original] do 'só sim é sim' era considerar que qualquer ato não consentido atacava a liberdade sexual, o bem jurídico em essência a ser protegido".

Ao conferir-se uma importância superior à violência, implicitamente se estaria favorecendo a interpretação de que "a gravidade da lesão à liberdade sexual" é diretamente proporcional ao grau de violência física.

"Evidentemente, se um sujeito força uma felação, vai importar se o faz com ou sem uma navalha. Se é com uma navalha, além da liberdade sexual está em perigo outro bem jurídico, que é a vida ou integridade física; portanto, [neste caso], estaria justificado o agravamento da pena, mas sem mudar a essência do delito", explica.

Para ela, o mais adequado seria "incluir a violência com intimidação como agravante, e não como tipo básico de agressão".

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Polêmicas à parte, benefícios sociais indiretos gerados pela onda do #Soloelsíessí ficaram patentes durante o caso do ex-jogador de futebol brasileiro Dani Alves, atualmente em prisão preventiva em Barcelona aguardando julgamento por um caso de suposta agressão sexual em uma boate no último dia 30 de dezembro.

Na época, a vítima foi prontamente atendida e encaminhada pela equipe da boate, com atenção hospitalar especializada no próprio local, graças à formação proposta pelo "No callem" (não nos calemos), projeto-modelo da prefeitura de Barcelona.

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A reforma da Lei de Liberdade Sexual apresentada pelo governo socialista do PSOE na última quinta-feira teve o apoio massivo do Partido Popular, principal agremiação de centro-direita, e gerou divisão dentro do próprio governo, com a oposição do principal sócio do governo do PSOE, Unidas Podemos.

A expressão de desgosto da Ministra da Igualdade Irene Montero, do Unidas Podemos, depois de anunciado o resultado da votação circulou por todos os meios de comunicação espanhóis.

Em seu discurso após a votação, Montero agradeceu o apoio de aliados, mas lamentou: "este é um grave retrocesso nos direitos das mulheres".

"Somos o primeiro país a dar um passo atrás, e a apenas dois meses [de assumir a] Presidência europeia (Montero alude ao fato de que a Espanha assumirá, pela quinta vez, a presidência do Conselho da UE a partir de junho de 2023). Neste momento, a Espanha tinha que estar na vanguarda e cumprir o acordo de Istambul".

A Organização Mundial da Saúde estima que uma de cada três mulheres europeias já sofreu violência física ou sexual.

A nova versão da lei não impedirá que casos anteriores à sua aprovação sejam revistos, como já vem acontecendo, mas valerá para todos a partir de agora.

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