Políticas e Justiça

Editado por Michael França, escrito por acadêmicos, gestores e formadores de opinião

Políticas e Justiça - Michael França
Michael França
Descrição de chapéu Vida Pública

Estamos em um processo de reconstrução transformadora, diz Guilherme Mello

Para o secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, o desafio é recuperar o caminho do desenvolvimento

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Nesta entrevista, o economista Guilherme Mello apresenta os principais progressos realizados pelo governo Lula, discute alguns desafios sociais e chama a atenção para a agenda racial.

Guilherme Mello, o que mais te orgulha em ser brasileiro? Tenho uma profunda felicidade por ser brasileiro. Talvez o que mais me traga orgulho do Brasil é a nossa cultura em seu sentido amplo. A capacidade de adaptação e a criatividade do povo brasileiro é algo impressionante. Costumo dizer que um país que gerou Machado de Assis, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Oscar Niemeyer, Maria Bethânia e tantos outros não tem como dar errado.

O que mais te entristece em nosso país? Perceber que o Brasil segue sendo um dos países mais desiguais do mundo. Em grande medida isso é parte da herança ainda não superada da escravidão, combinada com a apropriação do Estado por setores minoritários da sociedade.

Nosso maior desafio como nação é superar de uma vez por todas essas heranças, democratizar o Estado e reduzir a desigualdade, recuperando o caminho do desenvolvimento com sustentabilidade social e ambiental.

Como tem sido a experiência de sair da academia para contribuir no governo? Desafiadora e estimulante. Minha formação acadêmica aliada a participação no debate de conjuntura, assim como a experiência que adquiri na construção de programas de governo e na equipe de transição, ajudaram a traçar um mapa dos principais desafios econômicos. Agora estou tendo a grata oportunidade de aprofundar cada um desses temas e contribuir com a formulação de políticas públicas.

No entanto, o dia a dia dentro do governo é bastante diferente da academia. Não há muito tempo para reflexão, a velocidade e intensidade do trabalho na Fazenda é impressionante. O que facilita o processo de adaptação é que a equipe do Ministério da Fazenda é muito competente, comprometida e o ambiente de trabalho é excelente.

Guilherme Mello é formado em ciências econômicas pela PUC-SP e ciências sociais pela USP; possui doutorado em economia pela Unicamp, onde também é professor da instituição. Atualmente ocupa o cargo de secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda - Divulgação

Como você avalia o início do atual governo? Quais foram os principais progressos até aqui e onde precisamos avançar mais rapidamente? Acho que em quatro meses o novo governo Lula já entregou mais avanços políticos e sociais do que vimos nos últimos vários anos. Apenas para ficar em dois exemplos: o salário-mínimo terá um novo aumento real, algo que não ocorreu na média nos últimos 6 anos; e a tabela do IRPF será reajustada para fazer com que quem ganha até dois salários-mínimos não pague imposto de renda, algo que também não acontecia desde 2016.

Outro ponto fundamental foi a retomada de políticas sociais desmontadas nos últimos governos: o novo Bolsa Família, o novo Minha Casa Minha Vida, o novo Mais Médicos, o novo Plano de Aquisição de Alimentos e tantos outros projetos que estão sendo retomados de forma aprimorada em relação ao passado.

É um processo de reconstrução transformadora, que não busca voltar ao passado, mas construir as condições para o futuro. Ainda há muito a ser feito e estou convencido de que os frutos serão colhidos em breve, com efeitos positivos de longo prazo para nossa sociedade.

Em uma entrevista para o espaço "Políticas e Justiça", a economista Elena Landau criticou o governo dizendo que está desmontando reformas institucionais que deram certo e citou o caso da lei das estatais e o marco do saneamento. O que você pensa a respeito? Não há desmonte de reformas, apenas a busca por promover aperfeiçoamentos do que foi aprovado no passado, preservando os avanços, mas corrigindo eventuais distorções. Não há lei que não possa ser aperfeiçoada ou revisada, uma vez que se identifiquem elementos que não estejam adequados aos objetivos da legislação.

Em relação aos desafios sociais, quais seriam as políticas públicas que precisariam de maior atenção? O Brasil voltou ao mapa da fome e isso não é aceitável. O combate à fome, a pobreza e a miséria certamente são desafios que o novo governo Lula vai enfrentar e vencer, assim como fez em seus dois primeiros mandatos. Para isso, além de programas bem desenhados de transferência de renda —como é o novo Bolsa Família—, também teremos programas voltados para a produção de alimentos saudáveis e fortalecimento da agricultura familiar, com o objetivo de elevar a produção, a qualidade dos alimentos e reduzir o preço desses produtos.

Além disso, há um conjunto de políticas públicas que representam renda indireta para as pessoas e que precisam de uma atenção especial do governo. Destaco a necessidade de melhoria da qualidade na educação, em particular no ensino médio, assim como a ampliação da formação e qualificação profissional. Na saúde, a recuperação da cobertura vacinal perdida no último governo e ampliação da rede de especialistas e exames me parecem bons exemplos de desafios que precisarão ser enfrentados nessa nova gestão.

A literatura empírica recente tem destacado os limites da educação na promoção de maior igualdade de oportunidades. O capital social e a discriminação, por exemplo, têm um papel não desprezível nos resultados alcançados na vida das pessoas. Nesse contexto, como gerar maior integração em uma sociedade segregada? A chaga da escravidão ainda é muito forte no Brasil. O racismo aqui é estrutural e o acesso a educação é apenas um elemento para a promoção da integração social. De toda forma, acredito que a lei de cotas foi um enorme avanço civilizacional do Brasil, não apenas por democratizar o acesso aos espaços de produção de conhecimento, mas por viabilizar a convivência e integração, a construção de laços sociais que estavam ausentes naqueles espaços públicos.

No dia 21 de março a ministra Esther Dweck anunciou que haverá uma participação mínima de 30% dos cargos em comissão e funções de confiança para pessoas negras até 2025. Também se criou um Grupo de Trabalho para aprimorar a lei 12990/14, que previa a destinação de 20% das vagas em concursos públicos para pessoas negras. A pauta da desigualdade está no centro da preocupação deste novo governo e a questão da discriminação certamente é algo que limita a promoção da igualdade, portanto deve ser alvo de políticas públicas específicas.

Até onde você acha que vai a responsabilidade individual e a coletiva nos resultados atingidos pelos brasileiros? Margaret Thatcher dizia que "não existe sociedade, o que existe são indivíduos". Na realidade o que ocorre é o contrário: não há indivíduo fora da sociedade. É evidente que todos
temos nossa individualidade e nossas características distintivas, mas somos formados e moldados pelo nosso meio social. Nossos valores, nossas crenças, nossos costumes e nossa cultura são todos formados no processo de interação social, seja na família, na escola, na igreja ou com amigos.

Sendo assim, acredito que a verdadeira liberdade reside em dispor de condições efetivas para realizar nossas potencialidades e habilidades individuais. Via de regra, a construção destas condições é social, não individual. Nascer em Moema ou no Capão Redondo faz muita diferença nas condições que um indivíduo terá para desenvolver suas capacidades. Essa enorme distância do "ponto de partida" precisa ser corrigida para que os resultados atingidos sejam mais fruto de esforço e competência individual do que da herança monetária, social ou cultural.

Você é professor na Unicamp, universidade que representa um dos exemplos de inclusão do país. Como você avalia a política de cotas no ensino superior? Como disse, considero a política de cotas em universidades um dos grandes avanços civilizatórios do país. Não se trata apenas de reparar o passado, mas de construir o futuro. Toda avaliação da política de cotas demonstra seu sucesso não apenas em diversificar os espaços de construção de conhecimento, mas também de aproximar os resultados acadêmicos entre cotistas e não cotistas. Aquele medo, fruto de preconceito, de que a universidade iria "perder qualidade" devido a adoção da política de cotas se provou falso e tudo indica que a qualidade das universidades aumentou graças a maior diversidade de origens e vivências que encontramos hoje nesses espaços sociais.

Acha que deveríamos expandi-la? Por exemplo, para pós-graduação e para o corpo docente das universidades? No Instituto de Economia da Unicamp, onde sou professor, já adotamos cotas para estudantes pretos e pardos na pós-graduação. Fomos um dos pioneiros na área de economia a adotar essa política, que tem apresentado bons resultados. Também temos o vestibular indígena na graduação, que exige de todos um esforço de adaptação a uma nova realidade social e cultural, mas tem se provado muito enriquecedor.

Em 2021 foi implementada a política de cotas na contratação de funcionários (as) negros (as) e, neste ano, acaba de ser aprovado um formato de cotas para a contratação de professores (as) negros (as). São avanços importantes na superação das desigualdades.

Você atua em um meio que é predominantemente branco e masculino. Isso te afeta de alguma maneira? Sente falta de maior diversidade nos lugares que frequenta? Certamente afeta. Cresci em ambientes brancos, masculinos e predominantemente heterossexuais, o que normalizou a cultura existente nesses ambientes na minha percepção de mundo. Quando um homem branco entra em uma reunião de trabalho com outros 20 homens brancos, ele dificilmente percebe que há algo de profundamente errado nisso. Para ele, essa absoluta disparidade é "normal".

O esforço para desconstruir essa "normose da desigualdade" é contínuo e não pode ficar apenas no discurso. Na Fazenda temos visto um esforço por parte do ministro e de toda a equipe para garantir maior diversidade em nosso ministério. Quando assumi a SPE, procurei construir um ambiente mais diverso e hoje contamos com uma maioria feminina, além de uma equipe relativamente jovem. Percebo que isso cria um ambiente de trabalho mais harmônico, solidário e funcional. O esforço agora é para ampliar também a diversidade racial, que ainda precisa avançar mais em todo serviço público.

Esse talvez seja o momento mais importante da entrevista: gostaria de saber um pouco mais sobre seu gosto musical. Existe alguma música que está mexendo contigo atualmente? Você tem algum estilo de música preferido? Mais do que estilo, acho que tenho um período musical que me identifico profundamente, que são os anos 1950/60. Por influência paterna, sou fã do rock´n´roll desse período, assim como do country, blues e gospel que deram origem ao rock. Até hoje ouço muito Elvis Presley, Johnny Cash, Roy Orbison, Chucky Berry e Little Richard. Talvez meu maior ídolo musical seja Jerry Lee Lewis, que me levou a aprender a tocar piano —e reconhecer minha falta de talento artístico.

Já por influência materna sou apaixonado por MPB, com destaque especial para samba e Bossa Nova. Tom, Vinicius, Bethânia, Gal, Gil, Chico e Caetano estão sempre no meu rádio. João Gilberto talvez seja o artista que mais ouço há muitos anos. Nestas semanas, estou apaixonado pela música "Rei sem Coroa", uma canção do Francisco Alves que João tocou num recém-lançado show no Sesc-SP em 1998. A versão do João Gilberto é de uma beleza única, que só a cultura e música brasileira poderiam criar.

Por fim, gostaria de deixar alguma mensagem de esperança para os nossos leitores? Nos últimos anos o Brasil sofreu retrocessos que não poderíamos imaginar nem nos nossos piores pesadelos. Parecia que nosso país tinha fracassado. Mas, como dizia nosso saudoso Abujamra, sucesso e fracasso são dois impostores. Prefiro, como diz Chico Buarque na música "Que tal um samba?", acreditar no poder da cultura e do povo brasileiro de remediar o estrago, desmantelar a força bruta e desconjurar a ignorância.

Não gosto de personificações, mas se alguém sintetiza o conceito de esperança no Brasil, esse alguém é Lula. Um migrante pobre e faminto, que se torna operário, líder sindical, fundador do maior partido de esquerda das Américas e o presidente mais bem avaliado da história do Brasil. Depois é perseguido e preso injustamente, apenas para provar sua inocência e derrotar seus algozes nas urnas, livrando o Brasil de um governo funesto que ameaçava se perpetuar no poder. Quem tem Lula e Chico Buarque sempre haverá de ter esperança.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Guilherme Mello foi "Rei sem coroa", de "João Gilberto".

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