Prestem atenção: vou falar bem rapidinho, porque não posso parar um instante sequer
Apesar da minha idade avançada, ainda rebolo, danço e deslizo vertiginosamente no silencioso vácuo
Dia e noite rodopio no palco giratório das minhas rotações e translações (chego a sentir tonturas)
Não tenho luz própria, confesso, mas sou vida, dou vida e não cobro nada
Às vezes causo terremotos, maremotos, tsunamis (desculpem, não é por mal, faz parte do meu espreguiçar)
Não sei da minha origem, tampouco como tudo começou...
Só sei que já fui quente demais, gelada demais, um pandemônio (nem eu mesma me suportava)
Mas hoje estou bem mais tranquila, já encontrei o equilíbrio e a minha maturidade (já era hora)
Há milhões de anos surgiram vocês, como quem não quer nada
Tão instintivos no começo, tão inocentes (escondiam os dentes, seus devastadores)
Dizem que foi Deus quem os criou e até se arrependeu ("Vou afogar todos os seres viventes", disse o mestre antes do dilúvio)
E Noé achou graça da divina ingenuidade do Senhor
E com a Arca vocês ganharam uma nova chance, uma nova vida
E hoje já passam de oito bilhões de almas em conflito permanente
Não quero jogar-lhes na cara, mas tudo o que vocês comem, bebem e vestem provém do meu corpo cada vez mais exaurido
Até os seus sonhos são embalados em meu berço flutuante. Quanta mordomia, seus ingratos!
Mas vejam bem: esses dias ouvi dizer que vocês estão procurando um outro planeta para morar (Marte me contou, aquele linguarudo)
Não tem problema, vão em paz. Não vou sentir a mínima falta, nenhuma saudade
Vão com Deus, desejo que sejam felizes em outro lugar do Universo
Contento-me em ser a primeira mãe, sempre grávida, parindo sem cessar, sem cansar
Mas dou um último aviso: parem de disputar o que já pertence a todos
Não haverá herança se continuarem a me maltratar (A herança sou eu, se me entendem)
Quanto menos tirarem de mim, mais ricos ficarão
E poderemos permanecer mais tempo juntos
Embora eu não faça a mínima questão
Podem ir em paz, insisto
Não vou deixar cair um pingo de lágrima
As águas que derramo agora
São as chuvas que sempre chorei
Jaime Pereira da Silva é jornalista.
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