Sylvia Colombo

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Descrição de chapéu América Latina

Relação da monarquia britânica com suas ex-colônias do Caribe precisa mudar

Jamaica, Belize e outros querem deixar de ter o monarca inglês como chefe de Estado

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Buenos Aires

Era para ser um daqueles momentos em que William e Kate, agora príncipe e princesa de Gales, manejam tão bem. Diante das câmaras, são pura doçura e simpatia com o público. Porém, um encontro mal-arranjado na Jamaica quase destrói o esforço da família real de estreitar laços com suas ex-colônias caribenhas. Organizadores previram um encontro com jovens e crianças que estariam separados do casal real apenas por uma... grade.

A imagem acabou sendo um desastre, pois o público parecia engaiolado e acabou sendo uma referência clara e direta ao que foi o Caribe durante boa parte do Império Britânico, um local onde a escravidão causou imensos sofrimentos e ainda marca de modo negativo os índices sociais até hoje. Tudo isso para que países europeus, como o Reino Unido, vivessem em pujança econômica.

William e Kate em momento saia-justa na Jamaica, cumprimentando crianças negras por meio de uma grade
William e Kate em momento saia-justa na Jamaica, cumprimentando crianças negras por meio de uma grade - Chris Jackson/Reuters

Tanto a viagem de William e Kate, que passou por Jamaica, Belize e as Bahamas, em março, como a de Edward (irmão mais novo do agora rei Charles 3o) e sua mulher, Sophie, que visitou Santa Lucia, Saint Vincent & the Granadines, e Antigua & Barbuda, em abril, acabaram tendo resultados adversos para a Coroa. Na época, a ideia era estimular os festejos pelo Jubileu da Rainha, que comemorava 70 anos de reinado.

Ambos os casais foram celebrados pelo público de um modo geral, mas também foram vistos em vários pontos pessoas carregando faixas dizendo "reparação agora", ou "Reino Unido, sua dívida conosco continua aberta".

Embora tenha havido festa, recepção calorosa e multidões carinhosas para receber os membros da família real, o gosto amargo ficou por conta das manifestações de grupos que desejam um pedido de desculpas público do Estado britânico pelos males causados pela colonização e que países continuem tendo a Coroa britânica, no caso agora o rei Charles 3o, como chefe de Estado, eliminem esse vestígio do passado.

Isso já aconteceu em Barbados, em novembro do ano passado, quando o país removeu a figura de Elizabeth 2a do posto de chefe de Estado, transformando-se em uma república _e com uma mulher, a ex-juíza Sandra Mason, como presidente do país. Na cerimônia, estava o então príncipe Charles, que desejou sorte ao país.

O então príncipe Charles com a presidente de Barbados, Sandra Mason, e a primeira-ministra Mia Mottley, em novembro passado
O então príncipe Charles com a presidente de Barbados, Sandra Mason, e a primeira-ministra Mia Mottley, em novembro passado - Jonathan Brady/Reuters

Assim como em Barbados, o sentimento republicano já existe há tempos nos outros países caribenhos que, embora independentes, ainda mantêm a figura do monarca britânico como chefe de Estado. O movimento para livrar-se deste vestígio de um passado doloroso se acirrou, porém, com o assassinato de George Floyd nos EUA, em maio de 2020, e a ascensão do movimento Black Lives Matter.

Tanto o novo rei como o novo príncipe de Gales, em suas visitas recentes ao Caribe, referiram-se à escravidão como "uma aberração" e algo "que nunca deveria ter ocorrido". Além disso, o novo monarca e sua antecessora, a rainha Elizabeth 2a, afirmaram ver com bons olhos e apoiar as decisões das nações que desejem desvincular-se do Reino Unido.

Os gestos de boa-vontade, porém, são pouco para os grupos mais radicais que desejam, além de um corte de laços políticos, também uma reparação financeira. Isso poderá ser uma pedra no sapato do reinado de Carlos 3o e, obviamente, também ao recém-iniciado governo da conservadora Liz Truss, uma vez que este último item teria de ser aprovado pelo Parlamento britânico, se levado adiante.

A Jamaica é o país que avança de modo mais acelerado nessa direção. Na mesma viagem de William e Kate, o primeiro-ministro jamaicano, Andrew Holness, falou abertamente ao lado do príncipe sobre a necessidade de uma reparação financeira. O país já é independente desde 1962, mas agora tem um novo chefe de Estado, o rei Charles 3o, o que salta como uma anacrônica falta de lógica. William, em uma resposta educada, apenas celebrou a história de lutas dos jamaicanos, a independência, e a cultura locais, além de condenar a escravidão, mas não falou sobre dinheiro.

O Belize, independente desde 1981, embora geograficamente localizado na América Central, mas administrado durante o jugo britânico junto aos países caribenhos, também vem expressando a vontade de deixar de ser uma monarquia constitucional parlamentária vinculada ao Reino Unido. O Belize tem um ativo grupo de acadêmicos que trabalha na preparação de documentos e pesquisas sobre o processo de descolonização e deseja ser chamado a conversar sobre o tema com a Coroa.

Em Antigua e Barbuda, também independente desde 1981, o primeiro-ministro Gaston Browne pediu ao príncipe Edward que "ajudasse na mediação" com a Coroa e o governo britânico para a negociação de reparações financeiras. "Continuamos a ter a (então) rainha como chefe de Estado, mas aspiramos em virar uma República. Não quero envergonhá-lo em sua visita, apenas avisá-lo. Esperamos contar com sua influência diplomática para que tenhamos uma justiça reparatória com relação ao que ocorreu no passado". E acrescentou: "Nossa civilização deve entender e reconhecer as atrocidades que ocorreram durante a colonização, só assim vamos trazer balanço para relação e poderemos debater temas em comum abertamente". Edward nada disse, mas anotou o recado.

Embora a maioria dos ex-territórios britânicos no Caribe sejam hoje países independentes, não é o caso de cinco deles, que permanecem sob as asas do Reino Unido: Anguilla, as Ilhas Virgens Britânicas, as ilhas Cayman, Montserrat e Turks and Caicos. Seu futuro também permanece incerto.

Quando se fala da influência da monarquia britânica hoje, estamos falando muito mais de símbolos do que de política. Afinal, esta é manejada pelos governos. O que pedem os países caribenhos nos dias de hoje têm muito mais a ver com o atual governo britânico do que com o atual monarca. Ainda assim, em tempos em que imagens e figuras emblemáticas têm tanto peso na geopolítica mundial, o que diga o novo rei terá influência direta nos rumos do Caribe. Num primeiro momento, tanto Charles como sua família não parecem querer colocar obstáculos nas decisões desses países soberanos. Já reparações financeiras e desculpas em nome do Reino Unido terão de convocar também outras esferas do poder e da sociedade.

Os países caribenhos que foram colonizados pelos britânicos hoje têm enormes problemas de pobreza e desigualdade, e não há como não atentar para o fato de que são uma herança daquela época. Se a dívida moral já era visível antes, será ainda mais com a mudança do titular do trono britânico. Não se trata de um assunto que deveria continuar aberto.

A descolonização não é apenas uma saída de cena do país colonizador. Mas também um processo de muitas fases, que podem ou não envolver uma reparação financeira. Este será um papo essencial em algum vindouro chá entre Charles e Liz.

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