Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
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Viver a tristeza sem o álcool me faz mais forte

É melhor ser alegre que ser triste, mas enfrentar os obstáculos sóbria me faz crescer; a dor me faz entender meus impulsos

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A tristeza é um sentimento importante de se encarar. É por meio dele que consigo me enxergar melhor e entender meus impulsos e minhas tentativas de fuga. "Estude sua dor para que ela não se torne sintoma", aprendi no programa de recuperação.

Enquanto bêbada, qualquer ameaça de tempo ruim eu corria para o copo e sufocava meus sentimentos. Me entorpecer era a melhor e mais rápida forma de encarar os mais diversos desafios da vida.

Viver frustrações sempre foi extremamente difícil para mim e ainda é, porque só agora, sem a bebida, é que consigo vivenciar esse sentimento. Dizem que bêbado tem a mentalidade de uma criança. E é verdade! Se eu comecei a usar a bebida para me anestesiar aos 13 anos, quando parei de beber eu simplesmente voltei a essa idade mental.

Sabe aquela criança que os pais fazem de tudo para evitar que ela sofra? No plano ideal, não queremos que alguém que amamos sofra, queremos poupá-lo. Mas a realidade é que tudo o que passamos nos faz crescer e amadurecer. Muitas vezes, não basta que a criança ouça "Fique longe do fogo porque ele queima", ela mesma tem que sentir a mão queimando para entender que isso não é bom.

Recebo muitas mensagens de parentes de alcoólatras desesperados. Não sabem o que fazer vendo uma pessoa que amam se destruir com o álcool. A real é que ninguém sabe o que fazer com bêbado e na grande maioria das vezes não há mesmo muita saída. A sensação é parecida com a de tentar ajudar um bebê a parar de chorar. Por que ele está se esgoelando daquele jeito? Seria cólica, fome, frio, alguma dor específica? Não dá para saber até que você encontre o pediatra, que, por meio da experiência e análise clínica, possa identificar o que é que se passa. Bêbado e criança não conseguem se comunicar direito.

'Quando faço a travessia de tempos sombrios, consigo me ajudar e sair melhor' - Andrey Zhuravlev/Adobe Stock

Eu fui uma bêbada insistente. Precisei me queimar muito para me enxergar como alcoólatra. Não bastou eu ter sido internada uma vez, nem eu ter quase morrido em um acidente de carro, muito menos ter perdido amigos, trabalho e relacionamentos. Meu fundo de poço foi muuuuuito fundo. E ninguém aguentava mais essa impotência de estar ao meu lado só vendo a casa cair.

É de fato uma lambança, o doente alcoólico vai adoecendo a si e a todo mundo que está ao seu redor. Cansa. Um ano antes de conseguir entrar em recuperação, eu adotei meu cachorro. E foi ele o único que me fez companhia em todos os momentos desse terrível último ano de estragos. O animal ajuda, muito.

Fui tentar lembrar a letra das músicas que fazem referência à bebida para atravessar alguma dor. É prática comum e até um conselho tomar uma para passar. Ou seja, é comum utilizar a bebida como anestésico. A minha questão é que eu nunca tomei uma. Como disse o brilhante Ruy Castro em seu texto sobre o Sócrates aqui na Folha de S.Paulo, "Não sou contra beber, sou contra eu beber".

Dia desses eu recebi uma mensagem do meu amigo e leitor Pedro, dizendo: Alice, está tudo bem? Sinto pelo tom dos seus textos que você não está muito legal ultimamente. Uau, fiquei impressionada. Eu realmente ando um pouco triste, mas não há melhor remédio do que perceber que hoje eu consigo me comunicar até do jeito mais sutil sobre como me sinto.

Não vou ao copo, não vou ao bar, não esmago meus sentimentos em uma espécie de liquidificador. A grandeza está em aceitar a situação, a tristeza, e saber o que fazer com ela porque eu sei o que está doendo, eu sei por que estou me sentindo assim, lembro exatamente o que aconteceu nos últimos meses para me deixar desse jeito.

Ontem mesmo eu tomei um pote de sorvete de doce de leite com chocolate durante a noite porque não conseguia dormir. Às vezes acontece de recorrer ao doce/sorvete para ajudar a me acalmar. Fico ouvindo a canção "Samba da bênção". É sim melhor ser alegre que ser triste, mas encarar os obstáculos sóbria me faz crescer. É difícil demais aceitar, muitas vezes, situações que não posso modificar, mas aí eu vou para oração e peço serenidade. Porque eu sei que muitas vezes fui a protagonista dessa parte da canção: "Feito essa gente que anda por aí brincando com a vida. Cuidado, companheiro. A vida é pra valer. E não se engane não, tem uma só".

Está tudo bem, Pedro. Só estou encarando minha vida sem o álcool e isso muitas vezes dói, mas passa. E quando faço a travessia de tempos sombrios, consigo me ajudar e sair melhor. As pessoas que viram esse progresso ao longo da minha recuperação olham para mim e aplaudem com lágrimas nos olhos. Eu preciso sempre de muita coragem e consciência.

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