Vida de Alcoólatra

O silêncio mortal da bebida

Vida de Alcoólatra - Alice S.
Alice S.
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A organização me ajuda na minha sobriedade

A desorganização é um defeito que me prejudica; hoje vejo que a baderna foi um traço forte que marcou meu alcoolismo

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Eu sou bagunceira. Se tem um traço da minha personalidade com o qual é difícil lidar é esse. Difícil não só para mim, mas sobretudo para os que me cercam. Não tem ninguém próximo que já não tenha comentado: Alice, seria bom você se organizar melhor! Olha sua casa! Você não guarda suas roupas? E a pia, não consegue limpar logo depois do almoço? Meu grande amigo Paulo me viu arrumando a mala uma vez (eu viajo bastante a trabalho) e não se conteve: Olha o "jeito Alice" de arrumar a mala. Tá, não estava um primor, mas eu achei super ok.

Será que não percebo a zona porque moro sozinha? Tenho muita dificuldade em fazer uma coisa de cada vez. Consigo dar conta de dez coisas ao mesmo tempo —fica uma pequena zona temporária, mas sei que preciso finalizar tudo e só sossego com as coisas arrumadinhas (no diminutivo mesmo, porque de fato é uma ordem minha: Marie Kondo teria um ataque diário na minha casa). É um esforço enorme, porém necessário. E no final dá tudo certo. Hoje, digo. Que estou sóbria desde de manhã e vou continuar até a hora de encostar a cabeça no travesseiro. Imagina na ativa…

Sempre fui a bagunceira da classe, da casa, do trabalho. Acredito que a desorganização esteja no topo da minha lista de defeitos. E com certeza é uma coisa que me prejudica. Hoje vejo que a baderna foi um traço forte que marcou meu alcoolismo. Em um texto passado falei do "estado de acampamento" da minha última casa na ativa. E até hoje, todos os dias, me empenho nesse exercício de mudança. Porque estar em recuperação requer disciplina. Se tem algum esforço que faço todos os dias num grau elevado é me organizar. (Além, claro, não beber, que de fato é o mais difícil.)

Ilustração de uma mulher de terninho e com interrogação e dúvidas sobre a cabeça
Quando na ativa, eu não conseguia viver no silêncio; precisava de um monte de gente perto falando, rindo, me mostrando a vida - Adobe Stock

Uma vez estive em um um lugar cujo fuso horário é adiantado em relação ao Brasil, e isso é uma vantagem, ou seja, disponho de algumas horinhas em que 99% das pessoas e dos encargos da minha vida estão dormindo. Então é como se eu tivesse esse tempo só para fazer as coisas com calma, sem que o WhatsApp começasse a bombar com mensagens fofas de bom dia que eu quero responder mas nem sempre consigo com a dedicação que gostaria. Porque cada um tem um jeito. O pai que é mais religioso e manda bênção toda a manhã, a tia que manda um vídeo de sete minutos… Perder seeete minutos com um filminho de sol nascendo e música de autoajuda já é demais. Gosto, sim, de dar atenção às pessoas que amo, mas tudo tem um limite.

Nos momentos de viagens como aquelas, em que o fuso está a meu favor, vejo a vida alheia correr lá fora, com os minutos contados, e eu com essa vantagem do meu mundo ainda estar dormindo. Engraçado é que, quando na ativa, isso era horrível porque eu não conseguia viver no silêncio. Precisava de um monte de gente perto falando, rindo, me mostrando a vida. Não sabia lidar sozinha com quase nada.

A vida adulta com sobriedade me deu essa sabedoria de conseguir aproveitar o tempo em solitude —é essa palavra, né? Porque consigo enxergar paz em mim. Com o álcool, eu estava sempre ocupada querendo saber se tava tudo certo com meu corpo ou procurando formas urgentes de pedir para os outros me acalmarem. Triste, isso.

Porque eu era duas pessoas. A que precisava urgentemente de uma companhia e a que ficava zoando ou apagada no bar, nas calçadas, na vida, esquecendo da companhia que me acudia… Eu me alcoolizava para poder viver, dar risada etc., e tudo isso era falso e machucava as pessoas que sabiam da minha dor existencial. Eu esquecia de todos que me davam o real conforto. E muitos dos que não tinham tempo nem saco nem sensibilidade para ver que aquela alegria histérica era sinal de doença se afastaram MESMO.

Eu entendo e perdoo todos eles. E sobretudo me perdoo. Lamento as situações que eu perdi, os momentos que não vivi e os planos que deixei enroscados enquanto tentava me curar com o álcool, mas me perdoo.

A Tuca me ajuda muito nesse processo de amadurecimento. Porque vivemos situações de trabalho, somos íntimas e nos amamos muito. Acontece que ela é supercertinha e eu sou o oposto. Daí, às vezes, rola uma mágoa aqui, outra ali. Mas guardo com carinho o que sempre me lembra outra amiga que me ajudou a levar para frente este blog, em uma viagem para a América Latina que fizemos o ano passado: Alice, sua essência nunca mudou. Lembro que algumas vezes você me abandonou, me deu um perdido, mas você sempre voltava com a alma cheia de vida e de mágoa. Estava tudo ali.

Foi isso, era isso. Não adianta tentar arrumar meu passado nem insistir em aprender um método infalível de organização. Não funciona para mim e tudo bem. Em tempo: Paulo, aquela foi a melhor mala que fiz nos últimos tempos. Você, que não me conheceu na ativa, não sabe do que já fui capaz de enfiar em uma mala… Hoje dou risada, mas nada foi fácil com o álcool.

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