Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite

Estudo esboça pedra de Rosetta para decifrar efeito psicodélico

Milhares de relatos de viagens compõem mapa cerebral da consciência alterada

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São Paulo

A ciência psicodélica enfrenta uma grande dificuldade desde os anos 1950: as alterações de consciência que cada substância provoca variam muito tanto no aspecto bioquímico quanto na vivência pessoal de cada psiconauta. Correlacionar efeitos subjetivos com receptores cerebrais e neurotransmissores específicos demanda um mapa desconhecido, mas que começa a ser traçado.

Quando a carta final estiver concluída, essa a expectativa, seria em princípio possível percorrer um caminho inverso: partir dos sintomas e experiências narrados pelo paciente para indicar-lhe a droga ou combinação de drogas mais adequada para sua dor psíquica.

Par de mãos com imagem de mapa-múndi nas palmas tendo céu azul com nuvens brancas ao fundo
Ilustração - Creative Commons

A façanha coube a Galen Ballentine, da Universidade do Estado de Nova York (Suny), Samuel Friedman, do Instituto Broad (MIT e Harvard), e Danilo Bzdok, da Universidade McGill (Canadá). Seu esboço do território aberto para viagens saiu quarta-feira passada (16) no periódico Science Advances.

O título do artigo já diz um tanto: "Viagens e neurotransmissores: Descobrindo padrões de princípio em meio a 6.850 experiências alucinógenas". Em comentário na mesma edição, os psiquiatras Daniel Barron e Richard Friedman comparam o trabalho a uma pedra de Rosetta (tableta que permitiu decifrar hieróglifos egípcios) para "traduzir sintomas em moléculas" e "casar a droga certa para o paciente certo".

O chamado renascimento psicodélico deslanchou pesquisas com substâncias como MDMA, psilocibina e DMT da ayahuasca. A meta em vista é tratar transtornos mentais como depressão, estresse pós-traumático e dependência química.

Na esteira da ciência vieram empresas pioneiras de biomedicina. Elas estão engajadas numa corrida ferrenha por patentes psicodélicas e um mercado bilionário de pacientes que não melhoram com os remédios disponíveis.

Os 6.850 relatos subjetivos saíram do portal Erowid, que desde 1995 coleta testemunhos de experiências com compostos psicoativos. As descrições das viagens foram submetidas a análise computadorizada das palavras mais usadas pelos psiconautas em cada relato, por exemplo três vezes "vozes", duas "universo" e uma "amor".

Foram considerados 14 mil vocábulos, listados então pelo maior número de ocorrências e repetição entre relatos. Surgiram constelações categorizadas como voltadas para a experiência interior (náusea, fadiga, sono, barriga) e exterior (visão, audição, filme) e relacionadas com o tipo particular de droga usada.

O passo seguinte foi correlacionar as características desses relatos com o que se sabe da afinidade de cada uma das 27 substâncias psicodélicas a 40 receptores neuronais e os respectivos neurotransmissores envolvidos. Depois, mapear no cérebro as áreas em que esses receptores são encontrados em maior densidade.

Diagrams do cérebro mostram com cores áreas relacionadas com drogas psicodélicas
Diagrama mostra áreas do cérebro e suas correlações com drogas e relatos psicodélicos - Reprodução/Science Advances

Uma das implicações do estudo é relativizar a separação tradicional entre psicodélicos "clássicos" (mescalina, psilocibina, LSD, DMT) do restante (MDMA, cetamina, ibogaína etc.), com base em sua conhecida afinidade com o receptor de serotonina 5HT2A.

Até aqui se apontava que esse seria o mecanismo por excelência do potencial terapêutico. Em todos os casos considerados, porém, há grande número de receptores envolvidos, em combinações que variam de droga para droga, mas com variações sutis e alguma dose de superposição.

Nas palavras de Danilo Bzdok, o algoritmo de apreensão de padrões decompôs conjuntamente o espaço de contexto semântico e o espaço de afinidade com receptores: "Este foi o ingrediente chave que permitiu extrair os arquétipos de combinações receptor-experiência" e "mapear no cérebro quais aspectos distintos da experiência psicodélica estão ligados a quais combos de receptores de neurotransmissores".

"Isso, por sua vez, pavimenta o caminho para futuras estratégias para projetar drogas direcionadas, explorar novos agentes farmacológico que tenham por alvo unicamente ou especificamente aspectos distintos do que agora são experiências misturadas com alucinações visuais, dicas auditivas, dissolução do ego, reações emocionais etc."

Em seu comentário, Barron e Friedman destacam que Bzdok e co-autores usaram apenas informações já disponíveis em bancos de dados, sem realizar um experimento sequer. Só precisaram de recursos computacionais e muita estatística.

"O estudo é valioso, mas não explicita que trilha o caminho pioneiramente desbravado pelo grupo de pesquisa de Enzo Tagliazucchi, da Universidade de Buenos Aires", diz Sidarta Ribeiro, neurocientista do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (ICe-UFRN).

Ribeiro se refere ao artigo "As variedades da experiência psicodélica: Um estudo preliminar da associação entre os efeitos subjetivos reportados e perfis de afinidade de ligação de fenetilaminas e triptaminas substituídas", publicado por Tagliazucchi em 2018. De fato, o trabalho foi citado por Bzdok e já lançava mão do acervo Erowid.

"Em nosso trabalho de 2018 mostramos que é possível inferir como certos grupos de receptores se associam com certos efeitos subjetivos, em particular mediante a análise do discurso. Além disso, sugerimos que talvez fosse possível utilizar esse enfoque para realizar uma ‘engenharia reversa’ e projetar compostos com certos efeitos desejados para a psicoterapia psicodélica", disse Tagliazucchi a este blog.

Perguntei ao pesquisador da Argentina por que a ideia lançada há quatro anos só agora foi posta em prática de modo abrangente: "Ainda há pouca gente investigando as drogas psicodélicas desde a perspectiva da linguagem", comentou. "Ademais, quando publicamos o trabalho em 2018, encontramos muita resistência de revisores e editores, devido a que os dados farmacológicos não são ótimos."

Tagliazucchi conta que seguiu na mesma direção, mas nunca chegou a incorporar toda a informação para realizar o mapeamento do discurso nas áreas cerebrais. Ele acha que seria possível incluir também uma análise não semântica dos relatos, a exemplo de pesquisa que conduziu com Sidarta Ribeiro e Natália Mota com grafos, método que leva em conta somente encadeamento e repetição de palavras, não seu significado.

O neurocientista informa que já existe uma empresa explorando essa estratégia, Mindstate Design Labs. "Pessoalmente acredito que esses estudos poderão ter aplicação no médio prazo."

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