Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Obesidade entra na mira da panaceia psicodélica

Rol de possíveis terapias segue em alta; voracidade do capital tem efeitos adversos

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São Paulo
Desenho em P&B sobre fundo verde claro mostra esquema do cérebro preenchido com cogumelos
Ilustração de Raphael Egel - @liveenlightenment

A lista de candidatas a aplicações médicas de substâncias alteradoras da consciência, como a psilocibina dos cogumelos ditos "mágicos", engordou mais um pouco com a inclusão da obesidade. Boa notícia para os 13% da população adulta no mundo com IMC acima de 30, ou 650 milhões de pessoas?

Talvez. Por ora só existem estudos com animais, e nem todos indicam efeito benéfico. Mas o apetite de algumas empresas já foi aguçado pela perspectiva de abocanhar uma fatia desse mercado efervescente, turbinado pela onipresença de guloseimas ultraprocessadas.

Há razões plausíveis para investigar se esses compostos poderiam ajudar pessoas a emagrecer. Artigo recente da Universidade de Copenhague defende a hipótese de pesquisar psicodélicos contra obesidade no periódico Nature Reviews Endocrinology.

Psicodélicos clássicos (psilocibina, mescalina, LSD e dimetiltriptamina –a DMT da ayahuasca) agem com destaque em receptores da serotonina. Esse neurotransmissor, que também é alvo de remédios contra depressão, está envolvido em várias funções, entre elas a regulação da ingestão de alimentos,

Dá-se atenção especial ao receptor 5HT2A, que tem grande afinidade com compostos psicodélicos. Aí parece estar a chave para o aumento de flexibilidade mental e a formação de novas conexões cerebrais (neuroplasticidade) que se especula estarem na raiz do já comprovado efeito antidepressivo da psilocibina e da ayahuasca, por exemplo, embora com a limitação de estudos baseados em grupos pequenos de pacientes.

Há estudos observacionais apontando que usuários de psicodélicos tendem a levar uma vida mais saudável e a apresentar IMC menor. Cabe o alerta de que correlação não implica causação: não se pode excluir que pessoas com hábitos salutares se sintam atraídas por psicodélicos, por exemplo os amantes de caminhadas na natureza, surfe ou ciclismo.

Até cinco décadas atrás, antes da proibição imposta pela Guerra às Drogas nos anos 1970, alteradores de consciência foram estudados para tratar abuso de substâncias, em particular álcool. Hoje se questiona a qualidade metodológica daquelas pesquisas, mas testes clínicos mais rigorosos vêm indicando que psicodélicos têm potencial terapêutico contra dependência química.

Abuso de substâncias e abuso de alimentos têm muito em comum, na medida em que drogas causadoras de dependência e alimentos ultraprocessados, com alto teor de calorias, têm impacto nas áreas cerebrais de recompensa e motivação. Quem sofre com compulsão alimentar e foi ou é tabagista sabe bem que comida pode ser uma droga tão poderosa quanto a nicotina.

Hoje em dia, com todo o hype em torno do renascimento psicodélico, basta uma ideia plausível para lançar uma startup ou pedir patentes. Pouco importa que sejam possíveis aplicações de compostos usados há séculos ou milênios por populações indígenas, ideias que em princípio não constituem inovação digna de proteção de propriedade intelectual.

Não seria diferente com a obesidade, mina de ouro que já produziu várias corridas por drogas supostamente milagrosas. Basta mencionar as modas Xenical (orlistate) e Ozempic (semaglutida).

Em março, a empresa NeonMind divulgou dados de estudo com ratos indicando que a psilocibina induz emagrecimento, especialmente com perda de gordura visceral. No entanto, outra pesquisa com roedores não encontrou efeito.

Antes que alguém se entusiasme e saia catando cogumelos de zebu no pasto depois da chuva, no afã de emagrecer, um aviso: nem tudo que funciona para ratos tem o mesmo efeito em gente. Vida psíquica e hábitos alimentares nas duas espécies são bem diferentes, para dizer o mínimo.

Estão em andamento testes clínicos de psicodélicos com humanos portadores de distúrbios alimentares, sim, porém não com obesidade propriamente dita, só com anorexia e bulimia. É melhor ir com calma e aguardar a ciência. Ela anda mais devagar do que a galopante ansiedade contemporânea, que muitos tentam aplacar com gulodices.

A voracidade capitalista é uma das ameaças ao renascimento psicodélico. Ao inflacionar o rol de possíveis aplicações biomédicas, investidores e cientistas afoitos arriscam detonar uma saraivada de tiros no pé, com sucessivos resultados negativos e decepção no público. Não existem milagres em medicina, e ainda menos panaceias para conter a epidemia mundial de obesidade.

Antes de publicar seu best seller sobre psicodélicos, "Como Mudar sua Mente" (2018), o autor Michael Pollan escrevia ótimos livros sobre alimentação. E recomendava três regras para uma dieta saudável: coma comida (aquilo que sua avó reconheceria como comida); não muita; de preferência, vegetais.

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

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