Virada Psicodélica

Novidades da fronteira da pesquisa em saúde mental

Virada Psicodélica - Marcelo Leite
Marcelo Leite
Descrição de chapéu Mente

Sai maior estudo com psilocibina para depressão

Teste com versão sintética da controversa firma Compass teve 233 voluntários

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São Paulo
Vários cogumelos em cores psicodélicas compões a figura de duas cabeças
Ilustração de Raphael Egel - Arquivo Pessoal

O periódico médico mais influente do mundo, New England Journal of Medicine (NEJM), publicou na quinta-feira (3) o maior teste clínico para depressão já realizado com a psilocibina de cogumelos ditos "mágicos", do gênero Psilocybe. Foram 233 participantes no estudo de fase 2b, desenhado para determinar doses eficazes, que obteve resultados significativos, porém modestos.

O ensaio foi patrocinado pela empresa britânica Compass Pathways com sua fórmula sintética estável de psilocibina, patenteada como COMP360. Três doses foram testadas, 25 mg, 10 mg e 1 mg (esta última para controle), combinadas com sessões de psicoterapia para preparação da viagem psicodélica e para integração da experiência vivida com a substância alteradora da consciência.

Todos os pacientes, de 10 países na Europa e América do Norte, eram portadores de depressão resistente a tratamento, ou seja, haviam passado sem sucesso por tratamentos com ao menos duas drogas. Três semanas após a ingestão de psilocibina, quase um terço (29,1%) estava em remissão, mas só no grupo de maior dose (25 mg).

Passadas 12 semanas de acompanhamento, 20,3% dos voluntários no time de 25 mg ainda estavam melhores. Não se observou benefício significativo com 10 mg.

Ocorreram efeitos adversos em todos os grupos, com maior incidência no de dose mais alta. Neste caso, prevaleceram dor de cabeça (24%), náusea (22%) e tontura (6%).

Um total de 7 dos 79 participantes (8,9%) que tomaram 25 mg tiveram episódios de ideação suicida ou automutilação nas 12 semanas. O mesmo ocorreu com 5 de 75 (6,7%) que ingeriram 10 mg. Mas a companhia ressalvou que são manifestações comuns em deprimidos resistentes a terapias disponíveis.

Em 2020, o estado de Oregon aprovou em referendo a oferta de serviços de psilocibina in natura (cogumelos) sem necessidade de prescrição médica, medida que entra em vigor em janeiro próximo. Na próxima terça-feira (8), será a vez de eleitores do Colorado votarem iniciativa semelhante de descriminalização desses fungos.

A Organização Mundial da Saúde estimou em 2017 que mais de 320 milhões de pessoas no mundo padecem com formas graves de depressão. Um terço delas, por volta de 100 milhões, têm a forma resistente a medicamentos do transtorno mental, e 30% deste contingente tenta suicidar-se em algum momento da vida.

"A cada novo tratamento, a chance de resposta decresce significativamente, e pacientes ficam ainda mais desesperançados", afirmou em comunicado da Compass Scott Aaronson, líder do teste multicêntrico.

"No entanto, neste estudo, um número substancial de pacientes no grupo de 25 mg experimentou melhora em seus sintomas de depressão, com efeitos permanecendo por até três meses. Tenho orgulho de ter feito parte desse importante estudo e ver os resultados reconhecidos hoje por um periódico tão respeitado."

ac-símile da primeira página do artigo da Compass no periódico NEJM
Fac-símile da primeira página do artigo da Compass no periódico NEJM - Reprodução

A Compass agora se prepara para iniciar ainda neste ano estudos de fase 3, que poderão conduzir à aprovação da psicoterapia assistida por psilocibina. A expectativa é que isso aconteça por volta de 2025.

O processo de licenciamento de remédios usualmente demora uma década ou mais. Anda mais rápido, neste caso, porque a empresa obteve em 2018 autorização para seguir a via rápida da FDA (agência de fármacos dos EUA), como terapia inovadora ("breakthrough therapy"), mesma condição conferida a investigação similar do Instituto Usona, de Wisconsin (EUA).

"O estudo é muito elegante e bem conduzido", avalia Dráulio de Araújo, neurocientista do Instituto do Cérebro da UFRN cuja equipe divulgou em 2018 um teste piloto pioneiro com para depressão com ayahuasca. No presente o grupo testa um dos princípios ativos do chá, a DMT, em forma inalada e injetada, para abreviar o efeito e torná-lo mais adequado para o contexto clínico, uma vez que as viagens podem durar mais de quatro horas.

"Considerando que o estudo é para uma única intervenção com psilocibina, acho os resultados muito encorajadores. Na minha opinião, precisamos avançar no sentido de entender os efeitos terapêuticos de longo prazo, não após uma única intervenção, mas após um protocolo que envolveria múltiplas intervenções", propõe Araújo.

O pesquisador ressalva que não se trata de cura, dado que menos de um terço dos pacientes estavam em remissão, ou seja, sem diagnóstico de depressão três semanas após a intervenção. "Das três doses testadas, apenas na dose mais alta se observa efeito antidepressivo", assinala. "Seria isso um indício da necessidade da experiência subjetiva tipicamente observada em doses mais altas?"

Araújo se refere a uma controvérsia no campo da ciência psicodélica, a busca por drogas desenvolvidas a partir de alteradores da consciência clássicos (mescalina, LSD, psilocibina, dimetiltriptamina-DMT e 5-MeO-DMT) que exerçam impactos como neuroplasticidade (formação de conexões cerebrais), mas dispensem o efeito subjetivo. Uma corrente mais tradicional defende que os psicodélicos servem só para abrir comportas de traumas e conteúdos que precisam aflorar e ser elaborados em psicoterapia.

Essa é apenas uma das polêmicas no chamado renascimento psicodélico para a medicina. Outra é o modelo de negócios baseado na propriedade intelectual, como a patente da COMP360 da Compass, que no fundo é uma droga usada há séculos, talvez milênios, por povos tradicionais – por exemplo, os mazatecas do México. Outra, ainda, se dá em torno da medicalização das práticas ancestrais.

Marcelo Falchi, psiquiatra da equipe de Araújo na UFRN, chama a atenção para o fato de que quase 9% dos participantes tiveram eventos adversos graves. "Um modelo de tratamento sem ‘wash-out’ (retirada do anti-depressivo antes do início do estudo) poderia conferir maior segurança ao alarmante comportamento suicida observado, além de ser mais conveniente para o consultório", cogita.

Para Falchi, um modelo em que a dosagem de psilocibina operasse em paralelo com o uso do tratamento padrão poderia garantir maior segurança e potencializar os efeitos um do outro. "Nossa equipe propõe um modelo de intervenção psiquiátrico com psicodélicos associados aos tratamentos padrões como terapia adjuvante."

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Para saber mais sobre a história e novos desenvolvimentos da ciência nessa área, inclusive no Brasil, procure meu livro "Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira".

Não deixe de ver também as reportagens da série "A Ressurreição da Jurema":

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/reporter-conta-experiencia-de-inalar-dmt-psicodelico-em-teste-contra-depressao.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/da-caatinga-ao-laboratorio-cientistas-investigam-efeito-antidepressivo-de-psicodelico.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/07/cultos-com-alucinogeno-da-jurema-florescem-no-nordeste.shtml

Cabe lembrar que psicodélicos ainda são terapias experimentais e, certamente, não constituem panaceia para todos os transtornos psíquicos, nem devem ser objeto de automedicação. Fale com seu terapeuta ou médico antes de se aventurar na área.

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