Álvaro Machado Dias

Neurocientista, professor livre-docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e sócio do Instituto Locomotiva e da WeMind

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Álvaro Machado Dias

Por que as coisas são como são?

Perguntei a químico, professor de mecânica quântica, cosmólogo e Nobel de Física sobre a essência da realidade

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Argônio é um gás não reativo, que é usado em uma engenhoca capaz de preservar um vinho aberto por anos. Removendo um só próton de seus átomos, tem-se potássio, um sólido branco que explode na água. Essa transformação aceito com naturalidade. Agora, me fascina que algo constituído por 18 prótons, 18 elétrons e 22 nêutrons seja um gás inodoro e incolor, enquanto outro arranjo se manifeste como um metal branco ou a sola de um sapato.

Talvez você já tenha percebido um descompasso entre a simplicidade enganadora dos elementos e a complexidade aparente dos metais, sapatos e odores. Por que o argônio não se comporta como o potássio e vice-versa? Por que as coisas são como são?

Galáxia espiral registrada pelo telescópio James Webb - 23.mai.23/NASA/ESA/Reuters

Buscando respostas, consultei um químico amigo meu. O que segue está descrito abaixo.

"O segredo está nos átomos. O número de prótons define os elétrons, moldando as propriedades químicas. Átomos com elétrons em excesso ou de menos buscam estabilidade através de reações, formando moléculas novas. O argônio, com seus 18 elétrons, completa uma dessas camadas direitinho, razão pela qual é chamado de gás nobre. O potássio, coitado, só tem um elétron em sua última camada. Isso o torna muito reativo; ele quer expulsar essa partícula solitária e é por isso que se liga ao cloro, que vive uma situação oposta, formando o cloreto de potássio, muito usado em fertilizantes e medicamentos."

"Entendo, mas por que essas combinações de elétrons resultam nesses atributos?", questionei. "Para saber isso, é preciso mergulhar nas profundezas da mecânica quântica", respondeu ele, sugerindo que eu consultasse um especialista na área.

Agradeci e comecei a sondar quem poderia me ajudar. Escolhi um professor que, além de se destacar na pesquisa, é conhecido pela didática.

Antes de ligar, resolvi consultar o ChatGPT, que escreveu: "A transição de um gás inerte para um metal altamente reativo é fascinante e destaca como pequenas mudanças na sua estrutura atômica podem alterar drasticamente as propriedades químicas de um elemento". Ele também me lembrou que átomos não são densos e compactos. Até o ChatGPT sabe que as coisas não são como parecem. De resto, não ajudou muito e lá fui eu.

"Sei que os elétrons definem as propriedades químicas dos materiais, não apenas no nível atômico, mas também no das moléculas. Agora, o que me intriga é saber por que essas coisas têm as suas propriedades. Por que as coisas são como são?"

"As coisas que te intrigam não são as mais fundamentais do universo e só entendendo um pouco da natureza deste é que se torna possível responder à questão.

A trama fundamental da realidade é como um mar, com seu balanço característico. Quando este balanço é forte o suficiente, eis que surge uma partícula, tal como as turbulências mais fortes da água levam à formação de ondas, que nem por isso têm uma natureza diferente do entorno.

Então, o que são as coisas? Elas são flutuações na tessitura do universo, que ultrapassaram determinado de nível de energia, permitindo que as identifiquemos. Esta ideia está no título de um artigo que te recomendo: ‘Não existem partículas, apenas campos existem’.

Não pressuponha que as coisas que você busca conhecer são materializações sobre um fundo de não ser. Elas estão mais para excitações de uma realidade muito fundamental, para a qual o que existe materialmente não é fundamentalmente diferente daquilo que não se materializou.

Outra coisa importante sobre a natureza das coisas é que a matéria emerge em par com a antimatéria, tal como pessoas amarradas a espelhos, que se abrem para outra dimensão, na qual a situação se inverte e o espelho são elas. Matéria e antimatéria emprestam energia do futuro e literalmente se manifestam a partir do vácuo, como Richard Feynman mostrou. Porém, elas devolvem esta energia de maneira praticamente instantânea e a gente não consegue registrar isso.

Logo, a sua pergunta sobre o porquê de as coisas serem como são não faz sentido sem considerar que elas existem com seus duplos e, em estrito senso, possuem a natureza do próprio universo."

Encantado, mas ainda distante da resposta que buscava, insisti: "Considerando apenas as perturbações quânticas fortes o suficiente para gerar algo concreto, por que algumas resultam em gases inertes e outras em sólidos explosivos?".

"Isso se deve às origens da matéria. Para entender o que você busca, será necessário falar com um cosmólogo, pois a chave para tuas dúvidas reside na gênese do universo," ele explicou.

Em pouco tempo, eu estava falando com um cosmólogo francês, que conheci na USP.

"Prezado, entendo que as entidades são o colapso de ondas de probabilidade e que, apesar de parecerem densas e estáticas, as coisas possuem vazios. Reconheço que cada partícula tem seu correspondente de antimatéria, emergindo das flutuações quânticas do tecido universal. Contudo, minha verdadeira questão persiste: por que algumas substâncias se manifestam como gases inertes e outras como sólidos que podemos cortar com uma faca?"

"Após o Big Bang, a formação dos primeiros núcleos ocorreu sob condições extremamente quentes," explicou o cosmólogo.

"Inicialmente, apenas hidrogênio e hélio se formaram, desprovidos de elétrons. Vinte minutos mais tarde, à medida que o universo esfriava, esses núcleos começaram a capturar elétrons, dando origem aos primeiros átomos.

Agora, como a gente foi desses primeiros dois para os outros 96 elementos naturais da tabela periódica? A resposta é que o gás de hidrogênio se condensou formando as primeiras estrelas. Em seu interior energizado, o hidrogênio foi se convertendo em outras coisas. E as estrelas passaram a revelar a sua natureza de bolo de aniversário, com suas múltiplas camadas de recheio, compostas pelos diferentes elementos, um após o outro.

Acontece que estrelas explodem e morrem. No passado, isto levou ao surgimento de novos elementos e ao surgimento de estrelas menores, que reforçaram o processo. Então, por que as coisas que existem naturalmente são como são? Por que elas foram criadas deste modo no Big Bang ou no interior de estrelas. Suas propriedades refletem isso."

"Obrigado. Mas, por que essas coisas que surgiram na infância do universo ou no coração das estrelas têm as características que a gente vê, sente e cheira? Por que as coisas são como são?"

"Álvaro, isso você deveria saber. Não é o meu assunto, mas o seu."

Encerramos a ligação. Um toque de ironia pairava no ar. Eu questionava a essência da realidade, quando a chave deveria ser buscada na percepção. Não há sólido branco, mas um conjunto ótico e cognitivo, suscetível às mais variadas influências, que gera uma experiência que aprendi a chamar assim.

A percepção não produz retratos objetivos da realidade. Seres vivos diversos percebem coisas diferentes, ao passo que simulações computacionais comparando organismos artificiais capazes de registrar a realidade "como ela é" e outros, apenas capazes de registrar o que lhes é vantajoso, mostra que estes superam aqueles em todas as competições.

Somos tragicamente limitados em nossa capacidade de processar os estímulos do mundo, o que também nos torna uns felizardos, vitoriosamente eliminando tudo e todos que vemos pela frente.

Então, por que as coisas são como são? Por que fomos selecionados para vê-las assim.

Como neurocientista, eu deveria assinar embaixo dessa resposta. Mas, será que ela é boa de verdade? Tenho minhas dúvidas.

É claro que somos como insetos em torno da lâmpada registrando uma faixa exígua do universo por meio de filtros que não podemos comparar para sabermos o quanto divergimos. Por outro lado, a gente se entende muito bem sobre o que é cada coisa, sem contar que ainda está para nascer o sujeito capaz de enxergar argônio e não se queimar com a explosão do potássio. Filtros subjetivos não abolem o real.

Então, quem poderia me ajudar? Fiquei pensando sobre isso durante uns dias até que me lembrei de um ganhador do Prêmio Nobel de Física, que conheci por acaso, anos atrás.

Resolvi escrever para o cara. Caprichei na introdução e, com a certeza de que essa seria a minha última tentativa, perguntei: mas, afinal, por que as coisas são como são? A resposta que recebi esclarece por que ele, e não outro, foi laureado com o Nobel. "No one knows".

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