Anderson França

É escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e evangélico, é autor de "Rio em Shamas" (ed. Objetiva) e empreendedor social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares.

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Anderson França

Em 2020, o dia de são Jorge vai ser uma chance para o dragão

A data une todo mundo: traficante, estelionatário, miliciano, crente, macumbeiro, bicheiro, direita e esquerda

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Daqui a dois dias, teremos a mais importante comemoração religiosa do Rio de Janeiro, o dia de são Jorge, e acho que neste ano vai ser realizada num papa Francisco's style: pela internet. São Jorge este ano tá de quarentena. Distanciamento Espiritual.

Eu já escrevi alguns textos que se tornaram memoráveis sobre este dia. Minha família, evangélica e SÓ UM POUQUINHO fundamentalista, dizia que são Jorge era da macumba. Já meus amigos da macumba, diziam que são Jorge era Ogum. E na Inglaterra, são Jorge é o santo padroeiro, ou seja, trabalha no emprego que aqui é de Nossa Senhora Aparecida.

Passei a comemorar o dia de Jorge depois que mandei para a casa do carvalho as imposições doentias da igreja evangélica na minha vida. Levei uns 37 anos pra acender uma vela para são Jorge, na maior de boas. Nesse dia, a primeira coisa que faço é ouvir "Jorge da Capadócia" e "Salve", de Racionais MC's, do disco "Sobrevivendo ao Inferno". Depois eu ouço essa música na versão de Jorge Ben Jor, Fernanda Abreu, e saio procurando outras versões. E danço e canto alto.

E fui comemorar na paróquia de São Jorge em Piedade, subúrbio do Rio, quando morei lá perto, no morro do Dezoito. Desci o morro com uma câmera, fui, fotografei a missa, que inclusive teve a participação do Jorge Ben Jor, ao vivão. Jorge é devoto, todo mundo sabe. Mora hoje no Copacabana Palace, um rei tem seu castelo. São Jorge cuidou do seu filho, parceiro. Filho de Ogum não fica abandonado.

O dia de são Jorge une todo mundo. Traficante, estelionatário, miliciano, crente, macumbeiro, bicheiro, divorciado, casado, adúltero, português da padaria, senhorio e inquilino, direita e esquerda. Tinha tiro todo dia no morro, menos no dia 23. Eu era criança e morei do lado de um terreiro, em Cavalcante. Na madrugada de 23, era atabaque e cantoria até clarear o dia. Uma vez minha vó —VEJA BEM— a mais tolerante da família, acordou, com seus 73 anos, e virada no Jeová, foi até o muro e tacou uma panela de pressão pra dentro do terreiro.

No outro dia, a panela tava na porta de casa. Inteira. E com um saco de leite B, o mais caro, geladinho, e um pacote de pão francês. A mãe de santo devolveu a agressão, comprando comida para a gente no café.

Toma, desavisado.

Ali, naquele dia, me liguei que Jorge era o único cara que podia dar jeito nas diferenças que existem no Rio. Nem Jesus conseguia. Jesus é muito zona sul para o Rio. Muito Vila Madalena. Muito vegano. Muito Los Hermanos. O Rio precisa de um sujeito que frequenta todos os buraco quente. Vai na esculhambação, vai na cerimônia. Conhece o santo e o pecador.

Vocês sabem, quando o pau quebra na favela, o bandido faz a oração de Jorge. “Para que meus inimigos tenham pés e não me alcancem.” O curioso é que também o PM faz a mesma oração. E o milícia. E o morador.

Em muitos bairros do Rio, tem uma estátua de são Jorge na praça principal, uma coisa meio amadora, dentro de um altar azul, com flores de plástico e uma luz vermelha acesa. Ou foi o tráfico ou a milícia que bancou.

E como eu disse em 2015, na crônica “Jorge e o Cu”, que entrou para o "Rio em Shamas" (Objetiva, 2016), quando o cu tranca, a gente lembra de Jorge. São Jorge é o santo para quando o cu tranca. E o cu tranca, queridos, porque o cu faz parte da memória. Ele é tipo uma memória expandida, tem um fio que sai do cérebro para o cu e que ativa a memória SEMPRE que você se encontra em situações bastante excêntricas. Aquilo que a memória comum deixa passar a memória do cu não deixa.

Exemplo? Você, nessa quarentena, deixa o Facebook, PIOR, o WhatsApp aberto no computador e vai ao mercado. E recebe uma mensagem da mulher: “Quem é Lidiane, Robson? E que grupo é esse... Confinamento 1000Grau do Aquecimento das Fuselage?”

Sabe o que acontece nessa hora? Sabe, Robson?

Não é seu cérebro que vai contrair.

É o cu.

Porque você vai lembrar, Robson, da última vez que isso aconteceu, e do divórcio que deu. E imagina ser expulso de casa, em plena quarentena? Que delícia.

Nessa hora, você lembra do santo que anda em todos os meios, todos os bolinhos.

São Jorge.

E começa a pedir para que ele te proteja. Para que teus inimigos, nem em pensamento, possam te fazer mal.

São Jorge é esse cara. Todo mundo deve um favor a ele.

Mas esse ano, não iremos para Piedade.

Até domingo (19), o Rio registrava dados oficiais de mais de 4.600 infectados e mais de 400 mortes, segundo a Secretaria Estadual da Saúde. Witzel está com corona, o prefeito de Caxias, e saiba, eles não precisam de são Jorge.

Eles têm testes à disposição. Quantos quiserem. Só Bolsonaro, disse ter feito dois, e até agora não apresentou nenhum, apesar do pedido feito pela Câmara dos Deputados. Mas os governantes têm leitos e UTIs garantidas, médicos, enfermeiros, auxiliares. Podem tomar aquela doizinho de cloroquina na encolha, se for o caso.

O mesmo não podemos dizer de você, mesmo que tenha votado neles ou em Bolsonaro. Se você tossir em casa, o cu vai trancar. Porque você sabe que já existem caminhões frigorícos parados nas portas dos grandes hospitais, das principais cidades brasileiras. Caminhões, desses que levam carne para o açougue. O Exército, no Comando Militar do Leste, mandou ofício para os prefeitos pedindo que informassem QUANTAS SEPULTURAS DISPONÍVEIS há nos cemitérios.

O Drauzio disse, em entrevista, que vamos ver uma tragédia e que ele não está mais otimista.

Na mesma semana em que a Prefeitura do Rio decide anistiar, por decreto, as lojas dos pequenos comércios de pagarem aluguéis. Mas Casas Bahia e Ponto Frio, com as 162 lojas fechadas na cidade, pararam de pagar aluguéis e Crivella disse que, sem máscara, ninguém mais pode entrar em trem, ônibus e metrô. Está proibido. Isso, depois da morte de Ademir Abrantes Junior, de 43 anos, que trabalhava na Secretaria Municipal de Transportes, fiscalizando as aglomerações nos transportes públicos, na quarentena.

Apesar disso, parece que a pandemia “não pegou” no Brasil.

Paulista com mais um domingo de manifestações de apoiadores de Bolsonaro. Fizeram inclusive buzinaço em frente a hospitais. Em Porto Alegre, um homem bolsonarista agrediu com socos uma mulher na rua. E em Brasília, óbvio, não poderia ficar de fora, com Bolsonaro descumprindo recomendações da OMS igual mato e aproveitando para fazer um pouco mais de inferno na vida pública, indo para a frente do quartel do exército e discursar como um desequilibrado, fazendo Janaina Paschoal parecer lúcida no histérico (não histórico) discurso em que ela roda a baiana reaça contra a Dilma. A onda agora é AI-5, com Bolsonaro presidente. Pela manhã, ele deu um xispa num apoiador, dizendo que defende a liberdade e a democracia.

Sei que já teve uma pá de nota de repúdio. Mas o conselho de psiquiatria se manifestou? Porque tem quem defenda que o presidente seja, na linguagem do morro, um 22. Ruim da caixa de ideia. E precise de tratamento. No caso dele, eu acho que é um misto de safadeza miliciana, com falta de umas cartela de tarja preta.

E seus apoiadores seguem. Espero que continuem se agarrando, se abraçando, e em breve, Bolsonaro não terá nem eleitor.

No Rio, a milícia, com apoio da Polícia Militar, faz carreata e manda o comércio abrir. No domingo, na imagem de Lucas Landau, um PM apontava uma pistola para moradores que protestavam contra a carreata contra a quarentena.

Um policial aponta uma arma em direção a casas da favela do Vidigal, de onde pessoas jogavam ovos e objetos em carros em de carreata pró-Bolsonaro - oLucas Landau/Reuters

Tá assim. E Witzel, não dá uma palavra. Porque os poderes estão nas mãos dos milicianos. Em São Paulo, bolsonaristas tentam cancelar o Doria. Em Brasilia, Rodrigo Maia. É a cultura do cancelamento de Carluxo.

Antes, o CCC era o Comando de Caça aos Comunistas. Agora é a Cultura de Cancelamento de Carluxo. Que cai de boca no sabugo de milho, na foto da família, publicada neste fim de semana.

Já sabemos que Bolsonaro quer culpar os outros poderes. Que Teich só está ali para ser figurante. Que não interessa ao Teich comprar ventiladores, porque ele provavelmente defende os interesses dos planos de saúde privados. E, enquanto isso, Dino e outros governadores, menos o de Minas, vão cortando um dobrado, para impedir que sejam mais mortes, considerando que o número oficial, de menos de 3.000 mortes, já não convence ninguém da área de saúde.

E com um auxílio emergencial que nós sabemos que vai demorar para chegar e não vai chegar aos invisíveis da Receita e dos Bancos.

Este ano, um conselho que eu dou para são Jorge: descansa, militante.

A gente testou teus limites. Este ano, não tem mais santo que dê jeito.

Salva quem tá com o coração puro.

O resto, deixa que o dragão se encarrega.

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