Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Anônimos Anônimos

'Eu sou o +1. Eu não aguento mais não ter nome, sobrenome, história'

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"Bem-vindos, os três", começa a terapeuta. "Que tal cada um se apresentar e dizer por que procurou os Anônimos Anônimos?" Um sujeito de roupas elegantes e amarfanhadas, com olheiras mais profundas do que as Fossas Marianas, levanta a mão. "Boa tarde, todo mundo. Bom, eu sou o +1. Cês já devem ter me cruzado aí em alguma festa, casamento, show. Eu não aguento mais não ter nome, sobrenome, história. Ser só um número e um sinal algébrico numa lista". "Parabéns pela coragem, +1!", incentiva a terapeuta, com um sorriso complacente. "E agora, quem?"

Levanta a mão um homem anódino, que poderia ser rico ou pobre, corintiano ou palmeirense, da Cracóvia ou Quixeramobim: "Prazer, eu sou o Sicrano. Eu não tenho lugar de fala pra saber o seu sofrimento, tá, +1? Mas eu, no caso, me sinto assim um -3. Fulano já não merece nome nem rosto, Beltrano menos ainda, aí venho eu, o último colocado dos desvalidos. O cocô do cavalo do bandido. O bandido, claro, é o Fulano, o cavalo é o Beltrano e o Sicrano aqui é o cocô". "Calma", diz a terapeuta. "Todo mundo tem valor nessa sala. Já já a gente entra mais nisso. Próximo?"

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 04 de Junho de 2023, mostra o desenho de três homens, em plano médio, representando as personagens descritas na crônica.
Adams Carvalho

O último cara tem pinta de roqueiro decadente: calça de couro, bota e cabelo acaju. Traz a marra defensiva dos que sentem que a humanidade lhes deve. "Fala, galera, eu sou o Outro". Sicrano se admira. "O Outro, tipo, o Ricardão?". "Não, o outro, tipo, ‘Ah, é como diz o outro: antes vale um pássaro na mão do que dois voando’. ‘Ah, é como diz o outro: casa de ferreiro, espeto de pau’. Eu sou o maior poeta popular desse país, mais citado que Raul Seixas e não recebo reconhecimento nem direito autoral. Se eu ganhasse um centavo a cada vez que usassem uma frase minha, tava rico e frequentando todas as festas do +1."

O +1 se incomoda. "Eu sei que parece uma vida glamourosa, eu assisto a tudo, como e bebo o que eu quero, danço até de manhã, mas uma hora cansa. Eu não sou mais um adolescente. Vocês assistiram a Succession?" Há um alvoroço entre a terapeuta, Sicrano e o Outro: "Não conta o fim!". "Sem spoiler!". "Só faltam dois!"

"Calma", diz o +1. "Eu nunca dou spoiler. Eu não dou mancada. Se desse, deixava de ser o +1 pra todo mundo e virava o Nenhum, o que seria ainda pior. O que eu queria dizer é que... Tipo, muita gente comentou sobre aqueles herdeiros: ah, eles são bilionários, eles não precisam trabalhar por dez gerações, por que ficam se engalfinhando pra ganhar a Waystar? Porque eles querem deixar uma marca no mundo, como o pai deles. Ou como o Outro."

Outro dá de ombros. "Que que adianta deixar a marca se ninguém sabe que fui eu? Sou um Logan Roy com o reconhecimento de um Tom!" A terapeuta intervém. "Os heróis anônimos são muito valorizados. Quantos monumentos ao soldado desconhecido você não conhece?". "Isso é besteira. O soldado só é desconhecido pra quem visita o monumento. Ele era conhecido pela mãe, pelo pai, pelos irmãos, pelos amigos. Lá na quebrada dele, ele sempre vai ser o pica das galáxias!"

Sicrano encrespa. "Cês tão reclamando de barriga cheia! O +1 é tipo uma Kardashian, o Outro é um Homero, um Sulilvan e Massadas dos ditos populares, eu é que não tenho nada! Cês deviam ter vergonha de sofrer na minha frente!"

A discussão vira um bate-boca, a terapeuta não sabe como intermediar, então é salva pela próxima turma de pacientes, ou melhor, impacientes, que invade a sala expulsando os três. A turma dos "Ególatras Anônimos": Juneca, Pessoinha, Carlos Adão e o grão mestre varonil dos E-As, o primeiro ser humano a pegar a chave de casa e riscar na logo dos elevadores Atlas, no hall, como quem finca uma bandeira no solo da Lua, "AtlasADO".

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