Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

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Atila Iamarino
Descrição de chapéu Eleições 2022 jornalismo

Ignorai a verdade, e a moral vos libertará

O que está em jogo não são os fatos, a realidade ou a ciência, é a moral

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"Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda, tubaína." Essa frase simples contém muito do que leva as pessoas a continuarem presas em uma realidade paralela.

Nunca tivemos eleições e debates eleitorais tão checados factualmente. O último debate entre presidenciáveis bateu o recorde de visualizações de uma live jornalística no YouTube. Em tempo real, enquanto candidatos fazem seus argumentos —e mentem descaradamente em alguns casos— podemos acompanhar gráficos, tendências, notícias, recortes de vídeos e todo tipo de informação para defender ou refutar os pontos sendo debatidos. Mas uma pergunta que precisamos fazer é: quem se importa em ouvir a verdade?

Os candidatos à Presidência Luis Inácio Lula da Silva  e Jair Bolsonaro lado a lado no último debate
Luis Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro no debate na Band: nunca tivemos eleições e debates tão checados factualmente - Reinaldo Canato - 17.out.22/UOL

Se indecisos vão mudar de opinião ao saber disso, ótimo. Que venha mais checagem de fatos. Mas alguns grupos convictos parecem especialmente resistentes aos fatos sobre determinados assuntos. "É mentira que estamos desmatando tanto a Amazônia. E, mesmo se for verdade, já desmataram mais em outros governos. E mesmo se fosse preocupante, é mentira. E mesmo se fosse verdade, é preocupação de comunista. Porque preocupante mesmo é outra coisa." Essa linha de argumentação parece pronta para refutar qualquer fato apresentado. Porque está. Porque o que está em jogo não são os fatos, a realidade ou a ciência. É a moral.

Uma das descobertas que acho mais interessantes sobre como pensamos é justamente a ordem dos fatores. Escolhemos o nome da nossa espécie para simbolizar nossa inteligência e racionalidade (e nosso machismo, ainda que involuntariamente). Ao contrário dos animais irracionais, nós somos os Homo sapiens, os homens sábios. Mas nosso raciocínio pode ser bem menos racional do que parece.

Muitas vezes nós partimos de uma decisão emocional, feita com base nos nossos valores e no que sentimos. E usamos nosso lado racional para criar justificativas para o que sentimos. Nessas horas, a emoção guia o que pensamos, não o inverso. Quando valores e a realidade se chocam, muitas vezes é a realidade que voa pela janela.

Por isso a frase inicial é tão nociva. "Quem é de direita toma cloroquina". Ela não coloca a cloroquina como um tratamento baseado em qualquer fundamento técnico. Ela coloca a decisão de tomar cloroquina como uma questão moral e de identidade. Quem toma, não toma porque funciona, toma porque é de direita. Se eu responder com os fatos, que a cloroquina não funciona contra a Covid, não fiz nada para resolver a questão moral. Essa é a conclusão de um estudo muito interessante sobre a argumentação de temas politicamente carregados.

Se dirigir a questões importantes para as pessoas usando os valores morais de quem ouve foi a forma mais eficaz de ser ouvido. Ou seja, quando se vincula crenças a questões morais, "quem é de bem faz isso", se exclui o debate técnico da possibilidade de ele alcançar os que foram convertidos. O ciclo de polarização da informação é muito eficaz para emplacar o tratamento precoce, na falta da eficácia do tratamento.

E esse é um movimento crescente em redes sociais feito por quem não consegue contestar os fatos: a produção constante de conteúdo que vincula identidade e moral a questões técnicas. Assim, se questiona os valores de quem interpreta aquela questão, e não os fatos. Quem quer convencer as pessoas do contrário precisa trazer valores além dos fatos.

Não falta quem diga que o rei está nu. Mas se ele está usando um tecido que só quem é de direita pode ver, constatar que ele está nu implica em dizer que você é de esquerda. E não vai faltar quem diga que o tecido é muito mais lindo do que o que tem na Venezuela.

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