Eu deveria me concentrar em Schubert. Em Debussy. Ou pelo menos no que meus dedos estavam fazendo. O problema é que, a cada movimento mais brusco, os bisnetos de Dona Yolanda ameaçavam despencar em cima de mim. E não só eles: também o vaso de flor e o paninho de crochê que minha implacável professora mantinha em cima do piano.
O adágio dessa angústia começou quando cismaram que eu tinha bom ouvido e devia aprender a tocar. Mas com o advento das vitrolas, sons três-em-um e players em geral, a maioria das famílias de classe média já havia perdido o hábito dos antigos saraus. Lá em casa mesmo, o Steinway servia de armário na sala, apoiando copos, porta-retratos e todo tipo de cacareco, como o Essenfelder de Dona Yolanda.
Num trocadilho baseado em fatos reais, posso dizer que éramos 8 ou 80, posto que 72 anos nos afastavam em idade. Enquanto ela almejava me transformar num jovem prodígio, eu só queria tirar alguns hits da Turma do Balão Mágico.
No trajeto a pé entre minha casa e meu treinamento, eu fazia o dever catimbado até o último minuto, escrevendo no caderno pautado as claves de sol mais tristes e tortas. Abríamos o piano num ritual de adoração para ela e de puro sofrimento para mim. Retirávamos a faixa de veludo que protegia as teclas e deixava subir um cheiro de mofo. Com seu anel de mindinho em riste, Dona Yolanda dizia "dóóó" e começávamos a quatro mãos.
Aliás, que mãos? "Isso aí são dois tijolos. Pianista usa a ponta dos dedos." Eu juro que tentava, mas eram as falanges de uma criança sem talento. "Idade não é desculpa. Aos seis anos Mozart se apresentava para a Imperatriz da Áustria!"
Luizinho, o garoto do edifício atrás que aprendia teclado com outra professora, tocava lindamente todos os piuís abacaxis do grupo Trem da Alegria. E Beethoven se revirando no túmulo, por sorte surdo, enquanto eu destruía "Für Elise".
A esta altura da história, após tantas aulas, eu deveria oferecer uma lição de moral sobre o valor da persistência. Concluindo que a rigidez de Dona Yolanda moldou meu caráter. Porém, se a expectativa era "discípula de Nelson Freire", a realidade foi "pior do que Nora, a gata pianista do YouTube". Um concerto impossível.
Decidido que o único arranjo ali era a fuga, meus pais me deram então uma máquina de escrever. E as mãos que nunca foram delicadas para o piano puderam massacrar outras teclas. Encher outros cadernos. O que para mim, além de alívio, até hoje é superfantástico.
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