No meu aplicativo de música, constam 1.011 reproduções dela. Cá entre nós, sei que foram muito mais. A noite indo alta, o gato vindo preguiçoso. O que resta é a certeza desse número qualquer + 1. Afinal, os acordes de "Merry Christmas, Mr. Lawrence" já começaram a tocar novamente.
Quem sofre de insônia vive buscando razão e solução. A primeira, até hoje, não encontrei. Sempre estive entre os aflitos que se reviram em madrugadas tensas. A segunda, quem diria, descobri na suave companhia de Ryuichi Sakamoto.
Ter a casa toda para si —e em absoluto silêncio— é uma dádiva terrível para os insones. Um deleite culpado que beira o desespero eufórico, quando não um incômodo agradável que promete olhos vermelhos, bocejos e sinapses lentas ao longo do dia. Ainda assim caçamos o que ler, fazer e esdruxulamente pensar às 3h27 em ponto, no relógio da mesinha de cabeceira.
Um dia, sem qualquer calculismo, o tema de "Furyo – Em Nome da Honra" escapuliu por uma playlist e me encontrou na hora certa, na posição ideal entre as cobertas. A lembrança do filme estrelado por David Bowie e o próprio Sakamoto, autor da trilha, me levando a um lugar extremamente confortável, apesar da temática de guerra. Apaguei.
Tentei reproduzir o efeito satisfatório reunindo outras obras magistrais do músico japonês, como "O Céu Que nos Protege" e "O Último Imperador". Apelei para o lindo disco "Casa", dele com os Morelenbaum, sabendo que os hits eletrônicos da sua Yellow Magic Orchestra teriam o efeito contrário na minha atividade mental. Contudo, nada. Apenas "Mr. Lawrence" me enlaçava plena, escuridão adentro.
Aliás, quem disse que despertos são animais noturnos? Logo após o início desse experimento, adotei um filhote de gato com heterocromia e, claro, o batizei de "Furyo". Fechando seu olho verde e o azul, também passou a ser embalado pelos acordes que viraram riff em outra canção favorita minha: "Losing my Religion", do R.E.M.
Semana passada, ao saber da morte de Ryuichi Sakamoto, li um artigo do New York Times sobre as playlists que ele elaborava cuidadosa e respeitosamente, com composições alheias. Fez para o filho aprendendo contrabaixo, para o pai internado no hospital, para o enterro da própria mãe e para seu restaurante favorito. Melodias escolhidas a dedo, por um mestre.
Agora, vendo Furyo enrodilhado aos pés da cama, sei que também temos uma playlist do ídolo —e tocamos com gratidão.
Durma em paz, Mr. Sakamoto.
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