Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso
Descrição de chapéu União Europeia

Em viagem de férias, meu pai descobriu três meios-irmãos na Ilha da Madeira

Ao conversar com uma parente, ele soube que meu avô partiu para o Brasil e deixou filhos lá

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Margareth G. B. Laroca

Advogada, mora em São Paulo

Nos tempos da ditadura de António de Oliveira Salazar, outro António deixa a Ilha da Madeira para jamais regressar. Seu navio atraca no porto de Santos e, a partir dali, António viverá uma vida sem passado nem raízes.

O jovem António quer esquecer tudo, lançar suas âncoras em São Paulo, adotar o Brasil como nova pátria. Conhece e se apaixona por Maria Auxília, imigrante pobre de Penhas Juntas, freguesia ao norte de Portugal. O primeiro filho dos dois recebe o nome de um rei: Diniz.

O casal é feliz, mas o tempo passa. Maria parte primeiro, António fica triste e a segue três anos depois. O enlutado Diniz, pai de dois filhos e casado pela segunda vez, recebe de sua esposa a inesperada sugestão de irem conhecer a Ilha da Madeira. Mal sabiam o que a viagem lhes reservava.

O fio da história desata os seus nós. Ao acaso, vão flanando naquele pequeno pedaço de terra. Contratam um taxista para levá-los à freguesia de Porto Moniz.

“Brasileiros?”, indaga o motorista. “Primeira vez na ilha? Ah! Vosso pai era madeirense? Bala!? É um sobrenome bem incomum, só há uma família na Madeira com tal sobrenome. Querem ir ao cemitério?”, sugere.

Entre os jazigos do pequeno cemitério de Porto Moniz, Diniz e sua esposa leem algumas lápides e, atônitos, constatam que António mentira por toda a vida. Ele não era só, havia parentes próximos ali sepultados.

Decidem perguntar em um pequeno mercadinho no final da rua. A dona do comércio aponta uma casa branca perto dali onde vive uma velhinha da família Bala, talvez ela saiba alguma coisa. Batem palmas no portão, aparece uma senhora corcunda, toda vestida de preto.

“Olá! Moro em São Paulo, sou filho de António Bala. Vi as lápides…”, ele começa.

A senhorinha escuta com dificuldade e responde: “Sim, sou uma parenta de seu pai. Ele partiu para o Brasil e deixou cá filhos”.

Diniz imaginou não ter compreendido bem o português arrastado, quis confirmar, saber detalhes, mas foi enxotado da casa, pois a velhinha pensou: falei demais a um estranho.

A imagem mostra uma vista de um lugar alto. É possível ver o mar ao fundo e um recife que o separa das águas mais rasas das piscinas naturais, mais claras. Há muitas árvores e algumas pessoas aproveitando o sol
Piscinas naturais de Porto Moniz, no norte da ilha da Madeira - Divulgação

Em choque, com a passagem aérea já confirmada para o dia seguinte, Diniz, meu pai, volta a São Paulo e, incrédulo, me conta tudo o que descobrira na Ilha da Madeira sobre o meu avô António. Era impossível acreditar que o meu amado e pacato avô tivesse sido capaz de tamanho desatino na sua juventude.

Do outro lado do Atlântico, a mesma senhorinha vestida de preto correu para avisar Adelaide, a filha mais nova dos três que meu avô, ainda jovem, abandonara na ilha. Naquele dia, Adelaide ligou para todos os hotéis e companhias aéreas procurando meu pai, mas não o encontrou, pois o meu avô não dera seu nome de família aos filhos brasileiros.

Nervosa, ela liga para o irmão Cipriano, que vivia na Venezuela e lhe fala sobre o acontecido na casa da velhinha. Enquanto isso, meu pai, já de volta ao Brasil, decide pesquisar na lista telefônica de São Paulo pessoas com o sobrenome Bala, tentando descobrir algo que o ajudasse a desvendar o transcorrido na ilha. Encontrou cinco ou seis registros e teve sorte apenas no último, quando uma mulher lhe disse que seu falecido marido era madeirense da família Bala, mas ela nunca ouvira falar sobre meu avô.

Meu pai insiste, deixando o seu número de telefone para qualquer informação. A mulher anota displicentemente o telefone em seu caderno de receitas culinárias e, surpresa, recebe outra ligação com a mesma história poucos dias depois. Dessa vez era um amigo de Cipriano, o filho do meio do meu avô, que tentando descobrir meu pai na gigante São Paulo teve exatamente a mesma ideia de começar pela lista telefônica e finalmente tinha em suas mãos aquele número anotado no caderno de receitas.

Assim, ao acaso de uma viagem turística, de uma lista telefônica e das incríveis coincidências da vida, meu pai descobriu três irmãos ocultos no passado de meu avô, conheceu pessoalmente seu meios-irmão Cipriano e viveu o inesperado. Graças ao mesmo acaso, Cipriano desvendou o mistério do desaparecimento do pai, acolheu e foi igualmente acolhido por sua nova família brasileira.

Ainda que tardiamente, Diniz, meu pai, e Cipriano, meu tio, construíram laços fraternos, resgataram o tempo perdido, souberam perdoar meu avô e respeitar suas histórias pessoais. Muito se falaram, até o recente falecimento de meu pai, que após retificar seu próprio nome para acrescentar “Bala”, sobrenome de meu avô, fez as pazes com seus ancestrais madeirenses.

Esse texto é uma homenagem póstuma ao meu pai, que com toda sua dignidade traçou bonitos caminhos de vida. Também homenageio meu gentil tio Cipriano, dez anos mais velho que meu pai e que atualmente vive na linda Ilha da Madeira. Testemunhas, documentos, cartas e registros fotográficos não me deixam mentir.

Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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