Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Estávamos na ditadura e um homem me disse que o Exército o espionava com raio laser

Percebi que a denúncia era alucinação, mas lembrei que tinha escrito sobre a técnica em um texto de enciclopédia

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Luciano Martins Costa

Jornalista e escritor, vive em São Paulo

Meu primeiro emprego como repórter foi na Agência Folhas. Nos anos anteriores, eu tinha trabalhado, entre os 21 e os 25 anos, como redator de publicidade e posteriormente editor de textos na Abril Cultural. Nessa editora, meu trabalho era escrever e editar verbetes para as enciclopédias e coleções de fascículos.

Eu gostava muito dos verbetes sobre tecnologia, embora aprendesse mais quando se tratava de história, artes e curiosidades. Meus companheiros de trabalho eram filósofos, sociólogos, dramaturgos, todos com dez anos ou mais de idade que eu.

Era um bom emprego, bom demais para um iniciante que sonhava com viagens, grandes entrevistas, reportagens espantosas e de grande repercussão.

Mas o começo de uma vida de repórter tinha poucos atrativos. Ao “foca” nunca era oferecida aquela oportunidade de denunciar as injustiças, desmascarar um político corrupto, desvendar um crime. Por que nós, os iniciantes, éramos chamados de “focas”? Porque, segundo os veteranos, o novato não tem paciência de cercar o entrevistado com uma conversa mole até abatê-lo com a questão que ele não quer responder, e acaba levantando a bola para o inquirido, como as focas de circo.

A Agência Folhas fazia a cobertura rotineira dos órgãos públicos e, na reportagem geral, geralmente os novatos eram designados para casos policiais de pouca repercussão, curiosidades, acidentes e incêndios de pequena monta.

Eu era, desde o tempo da Abril, educador voluntário na Casa de Detenção, estava estudando o fenômeno da reincidência criminal e tinha planos grandiosos de reportagens nesse campo. Sabia que, com a experiência de redator, corria o risco de ser promovido de volta a redator e passar o resto da vida sentado diante de uma máquina de escrever, corrigindo e editando os textos daqueles que realmente iam conhecer o mundo.

Por isso, sempre que aparecia um caso curioso, eu me empenhava em extrair o máximo da história, para exibir meus dotes de repórter.

Não demorou a surgir uma dessas oportunidades. Uma das primeiras missões foi entrevistar um homem que morava em Osasco, na região metropolitana de São Paulo, cujo quintal dava fundos para o quartel de Quitaúna.

Ele tinha ligado para a Redação dizendo que o Exército estava testando no campo de treinamentos um equipamento eletrônico de espionagem que lhe causava dores de cabeça e outros incômodos. Queria fazer uma denúncia contra as Forças Armadas, o que, em plena ditadura, me pareceu um sinal promissor de bom assunto.

Chegando à casa do denunciante, ele me mostrou o muro dos fundos e apontou a extensa área de treinamento do quartel. Então, enquanto tomávamos café, explicou como funcionava o sistema: era uma espécie de canhão de laser que emitia um raio de intensidade constante em direção ao vidro da janela da sala de jantar, onde estávamos sentados.

Segundo sua queixa, todos os dias, em horários diferentes, mas com duração regular, ele começava a sentir um zumbido nos ouvidos e, em seguida, tinha visões súbitas, imagens que espocavam em seus olhos, e não conseguia reter seus pensamentos. Tentava pensar em alguma coisa para se distrair, mas era como se o pensamento fugisse de sua mente.

Então, pedia que sua mulher parasse de falar e ambos permaneciam em silêncio até que o fenômeno terminasse.

Segundo o denunciante, o raio laser captava as vibrações provocadas no vidro ou em qualquer objeto da sala pelas vozes das pessoas, e o aparelho, dentro do quartel, decodificava o reflexo do laser e registrava as alterações causadas pelas vibrações das conversas, o que permitia reproduzir e gravar tudo que se dizia naquele cômodo.

Como o quarto do casal também tinha janela voltada para os fundos, explicou, ele não conseguia ficar tranquilo nem durante a noite, porque a incidência do raio laser atrapalhava seu sono.

Enquanto o homem falava, sua mulher, da cozinha, fazia sinais, girando o indicador em torno da própria orelha, indicando que ele não estava bem.

Entendi, claro, que o homem sofria alucinações, que a pauta estava furada e não era o caso de expor sua condição, mas ouvi atentamente seu relato, fiz anotações, e observei que tinha um pequena biblioteca com enciclopédias, coleções de fascículos encadernadas.

Fiquei curioso com seu conhecimento sobre a tecnologia eletrônica que, naqueles anos 1970, era tema de especulações e visões futuristas, por causa do desenvolvimento do transistor de silício e dos chips de circuito integrado. ​

Quando me levou até o portão, a mulher do denunciante se desculpou e contou que ele estava em tratamento e ela tinha a recomendação médica de não confrontar suas manias.

Naquela noite, quando voltei para casa, fui dar uma olhada nas minhas coleções de fascículos.

Lá estava, no primeiro volume de “Como Funciona – Enciclopédia de Ciência e Técnica”, sob o título “Futuro da espionagem eletrônica”, página 16, o artigo que ele tinha descrito com tanta precisão.

O autor era eu mesmo.

Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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