Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Casos do Acaso

Com Brasil em crise, chorei lavando chão de restaurante em Portugal

Em 1992, uma amiga surgiu como uma fênix na minha vida e disse que me esperava em Lisboa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Saádia Ribeiro

Aposentada, mora em Sintra, Portugal

O acaso não é fruto do imaginável e do previsível. O acaso faz parte das redes de intrigas cósmicas ou humanas, mas que sempre nos levam a caminhos que não sabemos se já estavam traçados.

Em 1992, diante de uma inflação asfixiante, em um país que política e economicamente descia para o lodaçal, a casualidade bateu na minha porta e fez as malas comigo. Uma pessoa querida, há muito desaparecida do meu circuito, surgiu na minha frente, vinda dos confins das histórias que eu já nem lembrava.

Eu tinha uma vida razoavelmente organizada, casa alugada mas abundante, amigos e familiares comumente ligados ao meu dia a dia. Três filhos de dois casamentos: o mais velho com 14 anos, duas meninas com 6 e 1. Vida normal, de gente normal. Casa, trabalho, afazeres e uma relação discutida até altas horas da madrugada na tentativa de fazer valer a pena o que não valia mais. Cansaço físico, mental e até espiritual. O universo não colaborava comigo.

A amiga, havia muito tempo afastada, surgiu das cinzas como uma fênix na praça de alimentação de um elegante e movimentado centro comercial de Salvador. Muita conversa, algumas lágrimas do lado de cá e do lado de lá. Um convite: “Do que você está falando, mulher?”. “Portugal, minha amiga, volto para Lisboa amanhã! Te aguardo lá.”

Vender isso, vender aquilo, tirar as crianças das escolas, correria desenfreada, comprar dólares, tirar os passaportes. Dificuldade em achar roupas quentes no verão baiano para abrigar os forasteiros que iriam chegar em pleno inverno europeu. A família e os amigos em um desespero, antecipando a saudade e a certeza de que jamais voltaríamos. “Qual o motivo, por que isso, o que te falta aqui?”

Nada faltava, mas as oportunidades devem ser aproveitadas. “Este acaso é um sinal”, eu dizia. Sem certezas, com frio na barriga, mas o destino se mostrava atraente e sedutor.

E lá fomos nós, acima das nuvens, rumo à nova, desconhecida, mas atrativa terra. Meu companheiro, mostrando má vontade, só comprou a passagem dele no dia da viagem, gerando ansiedade e incertezas. Não seria fácil chegar no outro lado do planeta, atravessar um mar gigante, com três crianças sem respaldo e sem suporte. Mas ele veio comigo, acho que mais assustado e saudoso do que eu.

Deixamos para trás pessoas muito importante nas nossas vidas, já idosas, com os olhos molhados e vermelhos. “Ficaremos lá dois anos, juntamos algum dinheiro e voltamos. Até lá o Brasil estará mais habitável.” Assim pensam os emigrantes.

Chegamos em Lisboa em dezembro de 1992, a poucos dias do início do inverno. Céu cinzento, vento frio, cores diferentes. As ruas movimentadas, com pessoas bem-vestidas com casacos e cachecóis escuros, eram fotografadas pelas nossas retinas acostumadas ao brilho das cores, todos nós afeitos ao calor e informalidade do Brasil, particularmente da Bahia.

Esse foi o primeiro dia do resto das nossas vidas. Passamos por muitas casas. A primeira delas era tão humilde que até musgo e caracóis desfilavam pelas paredes dos cômodos na umidade típica da região de Sintra. Trabalhos precários, basicamente em limpeza de casas ou cozinhas de restaurantes.

Não estávamos preparados para fazer na terra de outros o que não fazíamos na nossa, mas o orgulho em não ceder espaço para arrependimentos serviu como mola propulsora para encarar os desafios que eram diários. Lavando o chão do restaurante, primeiro trabalho, eu chorei. Vaidade, o pecado favorito do diabo!

Passamos por fases de comida escassa, roupas doadas por terceiros, contar moedas para comprar o pão. “Aos poucos as coisas se encaixam” e esperança não me faltavam. As crianças se adaptaram rapidamente como só as crianças sabem fazer, com facilidade e maestria, e quanto mais alargavam seus espaços mais difícil ficava uma volta para nós.

Anos se passaram, poucas idas ao Brasil em férias. E cada vez que íamos sentíamos que já não pertencíamos àquele lugar. O sol, as cores, cheiros e sabores já eram novidades para os turistas em que nos transformamos. Estranhos dentro da própria casa.

Os filhos casaram, uma neta chegou e outros virão. A separação de casal foi inevitável. Meu companheiro vivia sempre entre os dois espaços, corpo em Portugal mas a mente no Brasil. Fugia sempre que podia, nunca quis realmente fazer parte da nossa história. Aos poucos fui construindo sozinha solidez e estabilidade. Outros trabalhos, sociedades malfeitas, ciclos de altos e baixos. Como todo o mundo.

Fiz poucos amigos, nada de guetos brasileiros em Lisboa. Viver em um país estrangeiro exige cautela e coerência em se adaptar à sociedade local e não forçar o contrário. Vivo uma vida caseira, muitos livros na cabeceira e o hábito de beber em casa um bom vinho português. O frio e o céu cinzento já fazem parte da minha vida há quase 30 anos.

Estamos sempre onde devemos estar.

​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.