Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

O xadrez me fez conhecer meu namorado em uma sala de bate-papo

Seu nickname de enxadrista chamou a minha atenção, e ele duvidou que eu era sobrinha de dois campeões brasileiros

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Zuleika Câmara

Professora de Ciência Sociais, mora em Franca (SP)

Frequentava, como de costume, as salas virtuais de bate-papo do antigo chat do site de notícias Terra (salas 30-40 B, Fortaleza B e Poesia B), com o intuito de me divertir e jogar conversa fora. Fiz por lá bons amigos, com quem o vínculo perdura até hoje. Em época de internet discada, entrávamos só depois da meia-noite, quando pagávamos apenas um pulso telefônico.

Na madrugada do dia 19 de agosto de 2006, entrei na sala Poesia B com o nickname Loba à Flor da Pele e, entre brincadeiras e pilhérias com os amigos virtuais, dava boas gargalhadas madrugada adentro quando surge na sala o codinome Capablanca, avatar que eu nunca tinha visto antes por ali.

Vinda da família de dois campeões brasileiros de xadrez, os irmãos Ronald e Hélder Câmara, aquele nome me era familiar: José Raúl Capablanca, grande enxadrista cubano, campeão mundial.

Imagem mostra um tabuleiro de xadrez com várias peças brancas e pretas ao centro, iluminadas de forma dramática por uma luz que parece vir de uma janela próxima
Tabuleiro de xadrez - Reinaldo Canato /UOL

Mais que depressa saí da sala e troquei o codinome para Judit Polgár. Como o nome de Capablanca me era familiar, certamente Judit Polgár também seria a ele. A húngara Polgár foi uma das poucas mulheres na história a vencer grandes campeões mundiais, como Boris Spassky e Garry Kasparov.

Puxei conversa com Capablanca. Como estávamos em um ambiente virtual —eu em Fortaleza, no Ceará, e meu adversário em Franca, em São Paulo— blefando (não sei jogar xadrez, sei apenas como mover as peças e que no jogo não há espaço para blefe), convidei-o para uma partida de xadrez. Imediatamente, entramos no modo “conversar reservadamente”.

No “privado”, disse ao meu adversário que era sobrinha do enxadrista Hélder Câmara. O Capablanca de araque disse não crer na conversa da (também de araque) Judit Polgár. Ficamos discutindo sobre a veracidade do fato, se eu seria ou não sobrinha do mestre internacional.

Capablanca dizia não acreditar que naquela madrugada conversava com a sobrinha de um ídolo, cujo livro, “Diagonais”, estava lendo à época (uma cópia xerografada que tinha ganhado de um amigo).

Seria muita coincidência! Centenas de salas de bate-papo, milhares de pessoas conversando. Pela primeira vez, entrava naquele chat e, de cara, encontrava a sobrinha de um dos mestres do xadrez. Ah, impossível! Só podia ser piada...

Em meio à discussão, Capablanca deu início ao jogo. Disse que jogaria com as brancas e deu o primeiro lance: e4 (para as pessoas de menos intimidade com o xadrez, pode-se jogar “às cegas”, virtualmente, sem a presença de um tabuleiro físico, indicando-se a casa para a qual a peça deve se movimentar).

“E agora, o que faço? Deu ruim, não sei jogar!”, pensei. Sendo poesia o tema da sala, desviei a conversa e perguntei qual poeta apreciava. De pronto, disse que gostava de Baudelaire. Retruquei: “Na casa de meu pai tem um ‘As Flores do Mal’ original, em francês. Era da biblioteca da minha avó”.

Novamente, Capablanca duvidou. Da poesia, passamos para a arte. Expressei minha admiração por Caravaggio, deixando-o cada vez mais desconfiado. Eu, artista plástica, e ele, profissional de pintura de desenhos e letreiros, também apreciávamos a obra do renascentista italiano.

E assim, entre desconfianças e coincidências, foram-se quatro meses de conversa entre chats Terra, emails, ICQ, MSN e Orkut até nos encontrarmos pessoalmente em uma encruzilhada possível, uma interseção entre o virtual e Franca e Fortaleza. Nos conhecemos ao vivo em Viçosa, em Minas Gerais, onde fui para iniciar meu mestrado. Paixão ao primeiro lance! Brancas na e4...

Eu, divorciada, mãe de dois filhos. Ele, solteiro. O namoro foi se consolidando, mesmo à distância. Nos encontrávamos em Fortaleza, Franca, Viçosa ou Marília, onde fiz o doutorado. Seguiram-se as convergências e coincidências: xadrez, poesia, arte, filosofia, antropologia, marcenaria...

Dois dias antes daquele nosso encontro virtual em 19 de agosto, Capablanca, o Mário, havia feito aniversário, e cinco dias depois, seria minha vez de celebrar meu nascimento.

Em 2013, Murilo, um grande amigo virtual, nos hospedou em Sampa, onde aproveitamos para visitar meu tio Hélder, que havia 50 anos morava na capital paulista. Foi xadrez que não acabava mais! Na visita, contamos para meu tio o que havia nos aproximado, e ele presenteou Mário com três livros autografados, dentre os quais o original de “Diagonais”.

Ao comentar com meu pai que namorava um homem de Franca, rapidamente comentou: “Sua avó [mãe dele] nasceu em Franca, veio para o Ceará pequena”. Da minha avó francana herdei o nome, Zuleika, e a oportunidade de viver nesta cidade. Deixei Fortaleza em 2019 e moro em Franca desde então. Quase 15 anos após aquela madrugada de 19 de agosto, nosso namoro continua.

Nos fins de semana, o Capablanca de araque joga xadrez no computador, e eu, a falsa Polgár, fico na mesa ao lado estudando antropologia. Quem disse que a arte não imita a vida, se é a vida a própria arte? Xeque-mate no primeiro lance! Brancas na e4 com a benção de Caíssa.

Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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