Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Charles M. Blow
Descrição de chapéu The New York Times

Morte de Tyre Nichols é a vergonha dos EUA

Caso reflete cotidiano de país que desistiu de enfrentar reforma policial e combate racismo apenas quando lhe convém

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Assistir pela TV à contagem regressiva para a exibição do vídeo de Tyre Nichols sendo espancado selvagemente por policiais de Memphis, no Tennessee, não apenas converte a morte negra em um teatro –é também uma condenação severa da perversão americana.

O vídeo foi cruel e execrável, mas infelizmente não constituiu um caso à parte. Em vez disso, foi mais um em uma longa sequência de vídeos que mostram corpos negros sendo torturados por policiais. Foi mais um exemplo de pornografia snuff (filmes mostrando mortes reais) com vítimas negras em um país onde o volume enorme de violência está deixando as pessoas insensibilizadas.

Protesto em Memphis, nos EUA, em repúdio à violência policial que levou à morte de Tyre Nichols
Protesto em Memphis, nos EUA, em repúdio à violência policial que levou à morte de Tyre Nichols - Leah Millis - 27.jan.23/Reuters

Os EUA –e o mundo— tomaram consciência de que a violência policial é um problema. E então simplesmente se afastaram, antes de o trabalho ser concluído e a guerra ser ganha. Após o assassinato de George Floyd em 2020, seguido por um histórico verão de protestos, assassinatos de cidadãos americanos por policiais não diminuíram –aumentaram.

O que diminuíram foram aliados efêmeros, políticos que buscavam melhorar seus resultados nas pesquisas de opinião e jovens trancados em casa pela Covid que tinham aproveitado os protestos como oportunidade de se encontrar. Com o tempo, o apoio ao movimento Black Lives Matter começou a cair até mesmo entre as pessoas negras.

E, à medida que os americanos transferiram sua atenção para outras prioridades, como a política e a economia, o público deixou de lado a sensibilidade para assassinatos cometidos por policiais, ou, então, com indiferença, começou a encará-los como subprodutos lamentáveis, mas em última análise aceitáveis do muito necessário aumento da ação policial em um momento de criminalidade em alta.

Para se destacar, uma morte precisaria ser verdadeiramente bárbara e perversa, e as circunstâncias em que ocorria, realmente macabras.

Esse caso agora se materializou com a morte do negro Tyre Nichols depois de ser barbaramente espancado por cinco policiais negros de Memphis. As autoridades reagiram com rapidez relativa para demitir, prender e indiciar os policiais criminalmente. Mas, em vez de me levantar para aplaudir um sistema que funcionou como deveria, e não como foi projetado, uma coisa não me sai da cabeça é: deveria haver legislação federal para prevenir assassinatos desse tipo.

Mas não havia e não há, porque mais uma vez os EUA deixaram na mão as pessoas negras que suplicavam assistência. Os EUA deveriam se envergonhar por abandonarem a questão da reforma policial.

Depois que os isolamentos da Covid diminuíram e as pessoas voltaram a se reunir para fazer outras coisas além de protestos, as prioridades delas voltaram à normalidade não intervencionista. Sua consciência racial induzida pela aflição de não poder sair de casa foi como uma espécie de delírio, a consequência de ideações sobre o fim do mundo.

Com o mundo reabrindo as portas, as eleições se aproximando e a criminalidade e a inflação subindo em paralelo, o interesse pela reforma policial e por proteger as vidas de negros contra a violência policial desapareceu, como cubos de gelo que se derretem numa calçada no verão. E, com isso, os EUA receberam lições hediondas que fazem mais mal à luta pela igualdade do que os protestos fizeram bem.

Pessoas negras aprenderam a lição de que o interesse por sua segurança física não passara do modismo mais recente. Aprenderam que o apoio recebido de grupos externos pode ser transitório e transacional –que algumas pessoas vieram para a luta quando se interessaram por ela e, quando seu interesse e energia arrefeceram, a abandonaram.

Muitos políticos liberais nos mostraram que seu engajamento com legislação para proteger vidas negras contra a violência policial estava condicionado às pesquisas de intenção de voto. Não tinham base em retidão moral ou princípios fundamentais, mas no apelo público de suas ideias. Quanto os ventos mudaram de direção, esses políticos mudaram de rumo, como um catavento.

Eles ficaram com medo de serem rotulados ou ser identificados como defensores de uma ideologia de "desfinanciar a polícia". Em vez de rebatizar com um slogan mais aceitável um esforço louvável para alocar recursos municipais de maneira mais inteligente, eles adotaram a atitude mais fácil, politicamente conveniente: apressaram-se a neutralizar a ideia, declarando sua oposição direta a ela –não desfinanciando a polícia, mas aumentando as verbas para ela.

Também os sindicatos de policiais aprenderam uma lição: que podiam sobreviver às denúncias mais intensas e coordenadas de suas práticas que jamais haviam enfrentado e ainda assim esquivar-se de legislação federal para combater a violência que ocorre sob seu comando.

Alguns estados, incluindo a Califórnia e Nova York, agiram prontamente, enquanto o tema ainda estava em voga, para reescrever alguns códigos penais, e algumas poucas cidades aumentaram a proteção dos cidadãos com iniciativas como o fortalecimento das políticas de "dever de intervir". Mas não houve uma reforma nacional da polícia.

Se existem ocasiões raras para empregar um clichê, esta é uma: eles se livraram de uma enrascada. Se existe alguma nesga de algo positivo em tudo isso, ela é no momento anedótica. É o impacto que mulheres negras parecem estar tendo em desafiar o sistema quando têm poder não necessariamente para prevenir excessos violentos, mas pelo menos para puni-los. A chefe de polícia que agiu prontamente para demitir os policiais no caso de Nichols é uma mulher negra.

Quando Rayshard Brooks foi morto em Atlanta, a prefeita da cidade, Keisha Lance Bottoms, negra, aceitou o pedido de demissão de seu chefe de polícia e decidiu que os policiais envolvidos deveriam ser demitidos sumariamente. Infelizmente, os agentes acabaram não sendo indiciados, processaram a prefeitura e foram reintegrados à polícia.

Quando uma policial branca de Dallas, Amber Guyger, entrou no apartamento de Botham Shen Jean e o matou a tiros, a chefe de polícia U. Reneé Hall, negra, agiu prontamente para obter um mandado de prisão da policial. Guyger foi condenada por homicídio doloso.

Não quero dar a entender que um punhado de casos revela uma verdade universal. Quero apontar esses casos como curiosidades às quais vale a pena prestar atenção.

Em vez de apontar para um sistema que está evoluindo e se humanizando, esses exemplos apenas ressaltam a natureza racializada do sistema e a lentidão com que ele tem agido em lugares onde nem as pessoas no poder nem os policiais acusados são negros.

A morte de Tyre Nichols não é apenas uma tragédia individual. Nichols é uma vítima rematada de um sistema predatório que os Estados Unidos perderam a vontade de enfrentar. A ferida não tratada sangrou, e o sangue atravessou a gaze.

Tradução de Clara Allain 

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