Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

A Justiça tarda, mas não salva

O atraso do Judiciário mata, o atraso do STF mata muito mais

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"A interpretação jurídica ocorre num campo de dor e morte." Essa deve ser a abertura mais desconcertante na história da literatura jurídica.

Robert Cover segue: "Interpretações jurídicas ocasionam violência sobre outros: um juiz articula sua compreensão de um texto e alguém perde sua liberdade, seus bens, seus filhos, até a vida" ("A Violência e a Palavra", 1986).

Em texto anterior, o autor já iluminava a intimidade entre instituições jurídicas e a violência: "Juízes são pessoas de violência. (...) Mas juízes também são pessoas de paz. A extensão da violência que eles poderiam ordenar (mas não o fazem) equivale à medida da paz e do direito que constituem. A violência da coerção, que distinguiria o direito da literatura, opera em silêncio" ("Nomos e Narração", 1982).

O alerta serve para qualquer sistema jurídico, mas fica pontiagudo num dos países mais desiguais e letais do mundo. A razão limpa e inodora impressa no texto da decisão judicial ofusca a desumanidade que o direito e o jurista, com técnica e método, ajudam a legitimar.

Operadores do direito cravam suas digitais na alta taxa de crescimento do PIBB, o Produto Interno da Brutalidade Brasileira, no envernizamento das mortes de crianças negras na periferia por operações policiais, na prisão sem condenação de um terço da população carcerária, na absolvição de policial por estupro de menina que "não resistiu ao sexo", ou de soldado que, por "legítima defesa imaginária", deixou jovem paraplégico.

A desorganização estatal da violência no país ganha abrigo em doutrinas jurídicas declamadas em sentenças. Mas também é impulsionada por simples atraso e indiferença.

"A Justiça tarda, mas não falha" se converteu em máxima autocomplacente sobre o tempo judicial: diversionista e autoritária, a pompa oracular presume infalibilidade e esconde irresponsabilidade por trás da demora sem causa.

Há que se calcular o custo do atraso judicial não só em prejuízo econômico, mas em mortes e doenças, em destruição de vidas e famílias. E podemos começar pelo custo do atraso do STF.

Se a medida do sofrimento humano fosse um critério da pauta de julgamento dos milhares de casos que dormitam na gaveta, o STF mereceria mais respeito.

A Justiça tarda e mata. Pode-se correlacionar muitos atrasos do STF (ou de outros tribunais) com número de mortes. Mortes evitáveis pela diligência judicial.

Exemplos de demora sem causa que produz morte: ações por medidas de segurança alimentar enquanto crianças desmaiam de fome em escolas (ADPF 831, na gaveta de Rosa Weber desde abril, e ADPF 885, na gaveta de Dias Toffoli desde setembro de 2021); ações que pedem controle de armas enquanto armamento se expande (como a ADI 6675, que ficou quatro meses na gaveta de Moraes, e pedido de vista de Kassio Nunes já extrapolou prazo).

Outro: ação que busca descriminalizar porte de drogas, lei obtusa que alimenta política de encarceramento mais grave do país (RE 635.659, tramitando há dez anos em meio a obstruções e sem voto novo desde 2015).

Um contraexemplo a comemorar: a ação que tenta, sob resistência da polícia fluminense, disciplinar operações em favelas (por mérito de Edson Fachin e apesar de Fux, que suspendeu o caso e o jogou para 2022, pois agora tem culto de Mendonça).

Além de matar, justiça tardia fabrica impunidade. A advocacia garantista por autodeclaração entrou numa onda celebratória pelas nulidades de muitas condenações associadas à Lava Jato, declaradas no atacado.

Enquanto manchete sensacionalista salientou que tribunais revogaram 277 anos de penas, advogados reagiram para mostrar que grave mesmo foi a aplicação de 277 anos de penas ilegais.

O reducionismo do embate sectário entre garantistas (por autodeclaração) e lavajatistas tem emburrecido o balanço da história.

Não se preocuparam em perguntar quando tais nulidades foram declaradas pelo STF, por exemplo.

O controle tardio de nulidades é tão sério quanto a produção de nulidades. Ainda mais grave se a própria nulidade foi forjada por mudança da regra do jogo no meio do jogo.

Alguns atos que, quando praticados, não eram nulos, tornaram-se nulos porque, anos mais tarde, o STF mudou de ideia sobre a regra válida. A prescrição espera logo na esquina.

O "tempo judicial" pode e deve ser diferente do tempo da política, mas essa distinção não libera tribunais para decidirem quando lhes for mais confortável. E a ordem constitucional de "razoável duração do processo" (art. 5º) não serve como canção de ninar.

Porque a covardia de não julgar, ou de julgar quando mais à vontade com seus pares, com opinião pública ou com impacto em sua reputação, também mata. E absolve, sem julgar, o colarinho branco.

Não é garantismo, mas ilusionismo. Tarde demais para o Estado de Direito.

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