Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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'Perderam, manés'

Gravidade limítrofe do 8 de janeiro virou pretexto para repressão geral a protestos

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A modesta reação do Estado brasileiro à tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 representa um pequeno passo para a democracia, um grande salto para a bestialidade. Ou pelo menos um novo salto para a continuidade de uma longa história de ilusionismo verbal e eufemismos que, a pretexto de "pacificar", preservam incentivos à delinquência política. Na nossa tradição da pacificação, cabe mais violência do que direitos.

A principal dúvida para a celebração de um ano da tentativa de golpe militar, aparentemente, foi estilística. Alguns queriam dar à cerimônia o título de "democracia restaurada". Arthur Lira, presente nos palanques de Bolsonaro, pediu "democracia inabalada", pois se recusou a enxergar qualquer ameaça ou dano a ser consertado. E venceu, inabalado.

Se honestidade fosse marca da verborragia política, o evento poderia se chamar "democracia emasculada". Ou então democracia impedida, algemada: a indisposição, por fraqueza de vontade ou de força, para punir crimes do poder político, econômico e militar.

Da esq. para a dir.: o ex-presidente José Sarney (MDB), o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso, o presidente Lula (PT), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e o ministro do Supremo Alexandre de Moraes em evento de aniversário de um ano dos ataques golpistas de 8 de janeiro, em Brasília
Da esq. para a dir.: o ex-presidente José Sarney (MDB), o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso, o presidente Lula (PT), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e o ministro do Supremo Alexandre de Moraes em evento de aniversário de um ano dos ataques golpistas de 8 de janeiro, em Brasília - Gabriela Biló - 8.jan.24/Folhapress

Perderam os manés e lambaris, as manicures e caminhoneiros, condenados à prisão por "atentado à democracia". Celebraram os barões, patrões e tubarões, fardados ou engravatados, com ou sem coturno. Liberados para a reincidência, já já podem voltar a conspirar contra eleições livres.

A pacificação foi sacramentada por Lula: "Daqui para a frente, a democracia precisa dar respostas aos anseios da população, precisa garantir emprego, salário, educação, saúde". A democracia brasileira tem urgências, e suas urgências nunca passam pela democratização de instituições armadas insubordinadas ao poder civil.

A garantia de direitos da população, contudo, também precisa de instituições que não confundam essa tarefa com "comunismo", nem usem esse termo despido de conteúdo como apito retórico para atacar "inimigo interno" que lhes incomode. Se a liberdade não é possível a quem tem fome, também não é a quem está sujeito a capricho de generais.

Mas talvez essa não seja a única vitória das forças bolsonaristas. Dias atrás, a Polícia Militar do estado de São Paulo passou a prender manifestantes que se dirigiam a protestos contra aumento de tarifa. E tipificaram as prisões como "tentativa de abolir violentamente o Estado democrático de Direito", em referência ao crime que motivou prisão de cidadãos em 8 de janeiro.

A polícia tenta promover duas ampliações conceituais fraudulentas e sorrateiras: primeiro, torna possível interpretar qualquer protesto contra o poder público como tentativa de abolição da democracia; segundo, basta encontrar meia dúzia de manifestantes com armas brancas na mochila (pedra, soco-inglês) para definir a manifestação inteira como criminosa. Nem a tipificação do crime de terrorismo abriu essa avenida para a arbitrariedade policial.

Num ambiente de polarização sectária, não surpreende que, se os "protestos de direita" pelo golpe de Estado foram qualificados como crime de atentado à democracia, os "protestos de esquerda" contra aumento de tarifas também o sejam. Induzir confusão e não distinguir é uma arte autoritária.

Ainda que a tradição policial brasileira em protestos, praticada também no 8 de janeiro, costume discriminar ilegalmente um dos lados do espectro, o debate jurídico relevante não tem nada a ver com a adulação ou repressão discriminatória entre protestos "de esquerda" e "de direita". Disciplinar direitos constitucionais, de quaisquer grupos, e estabelecer limites e critérios, é seu principal objetivo.

O ataque de 8 de janeiro, tanto quanto os acampamentos em quartéis e interdições nas estradas que o antecederam, todos parte de um mesmo fim, explodiram limites jurídicos. Porque, ainda quando atos concretos isolados se parecem visualmente (uma vidraça quebrada, uma via interditada), os tipos de reivindicação, as estruturas de comando e financiamento, e sobretudo seus planos documentados levam a qualificação normativa muito diversa. Elementos contextuais e não visuais marcam a diferença legal.

O STF ainda deve à democracia brasileira uma jurisprudência das liberdades com mais parâmetros jurídicos e menos frases de efeito. Na sua ausência, bolsonaristas de coturno continuarão a explorar as brechas da lei e os potenciais autoritários do 8 de janeiro.

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