Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Defender nossa liberdade sempre significa defender a liberdade do vizinho

A moral é a arte de permitir o máximo possível

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No fim dos anos 1960, quando imaginávamos que nossa revolta transformaria o mundo para melhor, meu pai dizia: “Cuidado, os extremos se tocam”, como se nós, “progressistas”, e os fascistas e congêneres, que combatíamos, tivéssemos algo em comum.

Aquela observação irônica e irritante era a expressão de uma ideia que logo se imporia mundo afora.

Fascismo e comunismo podiam servir aos interesses de classes sociais opostas, mas tinham algo em comum, algo que talvez fosse mais importante que suas diferenças: ambos aspiravam a ser totalitários, ou seja, a controlar completamente a vida dos cidadãos em nome de uma comunidade que era considerada mais importante do que os indivíduos.

Na origem dessa ideia: 1) a obviedade de que os regimes comunistas reais foram e eram pesadelos opressivos e assassinos; 2) décadas de pesquisa psicológica sobre a obediência burocrática que, no sistema “certo”, levara pessoas comuns a se transformar em torturadores, assassinos e cúmplices de genocídios.

Ilustração de uma cama de solteiro arrumada em que uma camada flutua sob a outra. A cama está no chão, o colchão com lençol de elástico está flutuando em cima, depois um lençol simples, uma colcha grossa e um travesseiro na posição mais alta, acima de todos.
Luciano Salles/Folhapress

No fim dos anos 1980 defendi minha tese de doutorado, dedicada a entender a origem de complacência e obediência num regime totalitário.

Para mim, e para muitos, a distinção entre esquerda e direita se tornava menos relevante do que a distinção entre os governos com práticas e sonhos totalitários e os governos que preferiam sonhar menos e deixar os indivíduos livres para viver a vida que lhes parecesse certa.

Depois de um século e meio em que a análise política perguntava em que pé estava a luta de classes, as questões urgentes das últimas décadas voltam a se parecer com as questões da aurora da modernidade: qual é a extensão da liberdade que ousamos nos permitir? E qual parte de nossa liberdade aceitamos sacrificar às necessidades da vida em sociedade?

As sensibilidades de direita ou de esquerda podem dar respostas diferentes, sobre desigualdades, redistribuição de riquezas, impostos etc. 

Mas, sensibilidades diferentes à parte, somos libertários: o inimigo comum é o Leviatã, o monstro que nós mesmos criamos, supondo que precisemos de um governo central e autoritário para nos proteger da desordem de nossa “selvageria”.

Para os filósofos, o Leviatã nos protegeria contra a selvageria social, que seria “natural”; para os psicanalistas, o Leviatã é alimentado pela tentativa de cada um se defender dos seus próprios desejos. Ou seja, há quem diga que, sem Estado forte, os homens se matariam reciprocamente, porque isso é o que os homens fazem “naturalmente”.

Mas eu tendo a pensar que o Leviatã surge para proibir de matar ou para reprimir o sexo casual, porque muitos têm uma tremenda vontade de matar e se enfiar numa suruba e não conseguem nem se autorizar, nem se conter.

Seja como for, a questão do dia é como eliminar o custo “inútil” do coletivo —“inútil”, digo, no sentido que não é necessário pagá-lo para que a vida em comum seja possível.

A tarefa não é simples. A vontade de regulamentar, proibir, reprimir vem do âmago de cada um e tem raízes no cristianismo desde Paulo de Tarso. Ainda recentemente, li um texto simplório em defesa da abstinência sexual dos adolescentes como política de Estado: o pressuposto insidioso era a ideia de que a moral seria a arte de proibir. 

Falso: a moral é a arte de permitir o máximo possível.

E se eu não concordar com os atos que meu vizinho se permite? Não tem problema: você nunca será obrigado a agir como seu vizinho. Para conter sua indignação, pense que é sempre o registro da inveja que nos faz definir a liberdade dos outros como libertinagem. Ninguém pode te obrigar a mudar de sexo. Mas ninguém pode te impedir. Ninguém pode te obrigar a se prostituir, mas ninguém pode te impedir. E por aí vai.

Cada um se permite o que ele consegue se permitir. Praticamos morais diferentes, mas temos um inimigo 
comum. Citando um grande conservador (Michael Oakeshott no livro sobre o racionalismo em política de 1962), inimigos comuns são aqueles para quem governar significa “transformar seu sonho particular numa maneira pública e obrigatória de viver”.

Os verdadeiros conservadores, aliás, são hoje os aliados dos libertários, pois eles recusam toda a engenharia social: a sociedade pode e sabe produzir suas mudanças sozinha, aos poucos, de baixo.
Um detalhe: defender nossa liberdade sempre significa defender a liberdade do vizinho como se fosse a nossa.

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