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'Ulisses', de James Joyce, chega aos cem anos sem se livrar de sua fama de difícil

Inspiração na 'Odisseia' e uso de técnicas como monólogo interior e fluxo de consciência reforçam a pecha

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São Paulo

"Ulisses", livro do irlandês James Joyce que completa cem anos agora, é uma obra "que se pode apenas reler". É o que diz Caetano Galindo, tradutor e professor da Universidade Federal do Paraná, em "Sim, Eu Digo Sim", guia de leitura do clássico joyceano.

Responsável pela tradução de outros gigantes da literatura, como a lenda folk Bob Dylan e David Foster Wallace, autor do monumental "Graça Infinita", Galindo diz que foram cerca de dez anos dedicados ao "Ulisses" entre a sua tese de doutorado e a tradução da obra.

homem branco de óculos e terno claro com tapa-olho
O escritor irlandês James Joyce, autor de 'Ulisses', em retrato de 1926 - Reprodução

Cem anos, três traduções brasileiras e uma série de edições anotadas e guias de leitura depois, "Ulisses" ainda é considerado um livro difícil —e que não procura facilitar. Fator que, surpreendentemente, chega a atrair certos leitores. "Ele não explica coisas, não pega pela mão. Você é que tem que pensar ", diz Galindo. "É um livro que, pela sua própria dificuldade, obriga as pessoas a prestarem atenção."

O tradutor acrescenta, porém, que essa dificuldade não faz com que o livro esteja na mesma categoria de certas obras de homens brancos e europeus do alto modernismo, cultuadas justamente por causa de sua dita ilegibilidade. "É um livro profundamente antimachista, inclusive anti-homem branco europeu enquanto centralidade, em alguns sentidos até antimodernista. É um livro muito baseado na forma popular, na arte popular e em uma figura popular."

Esses aspectos do romance não são, porém, óbvios —e dissecar esses pontos em meio a mais de 700 páginas que misturam diferentes gêneros literários com técnicas inovadoras pode ser uma tarefa árdua para o leitor desavisado.

Com 18 capítulos baseados na estrutura da "Odisseia" de Homero, "Ulisses" eleva Leopold Bloom, um judeu irlandês de classe média ordinário, ao status do herói mítico Ulisses —nome latino de Odisseu, mantido na grafia anglófona na última tradução brasileira, de 2012.

A construção mítica da obra enquanto labirinto de referências inclui ainda uma série de diagramas idealizados pelo próprio Joyce para ajudar os amigos que pretendiam ler e palestrar sobre o livro.

Nas tabelas, os episódios do romance são associados a características como cores, partes do corpo humano e disciplinas de estudos. O capítulo quatro, "Calipso", nome da ninfa que escondeu o Ulisses homérico em sua ilha, faz referência ao rim, à cor laranja e aos estudos econômicos —embora não mencione esses elementos explicitamente.

As 730 páginas —na edição original, que se estendem para mais de mil nas atuais— se restringem a cerca de 16 horas da quinta-feira mais famosa da literatura, o dia 16 de junho de 1904.

O magnetismo do romance é tamanho que a data se tornou uma espécie de festa em homenagem a Joyce, o Bloomsday, festejado desde 1924 com trocas de livros, passeios por Dublin e até tentativas de ler o tijolo joyceano ao longo do dia. Só em São Paulo foram celebradas mais de 30 edições do evento.

Coordenador editorial da tradução dez anos atrás, Paulo Henriques Britto conta que pelo menos meia dúzia dos 18 capítulos inauguraram técnicas depois popularizadas, caso por exemplo do paralelo homérico, batizado pelo poeta T.S. Eliot de "método mítico". O fluxo de consciência e o monólogo interior foram outros artifícios narrativos popularizados pelo romance —mesmo que o próprio Joyce tenha negado ser o inventor delas.

"Ele queria ir a lugares que o romance não tinha ido ainda e para isso ele precisava de ferramentas novas", afirma Galindo. O tradutor diz que a dificuldade do livro não é uma camada a ser superada, mas parte da viagem da obra. E que, antes de mais nada, ele é "afirmação, é amor, é ternura". Além de um catatau de bom humor, unindo o rebuscamento das tais técnicas inovadoras com a sátira e a escatologia.

São poucos heróis da literatura que conhecemos tão por dentro, literalmente, quanto Bloom. Poucas páginas separam uma descrição indireta das feições do protagonista, feita por meio da menção a uma xícara bigodeira —que, atravessada por uma ponte de louça, impedia que os cavalheiros sujassem os pelos faciais— daquela que descreve suas hemorroidas e seu desejo de passar pela vida com a naturalidade e facilidade com que defeca.

O apreço de Joyce pelo aspecto fisiológico do corpo humano gerou torcidas de nariz de colegas ilustres. A inglesa Virginia Woolf, por exemplo, recusou a publicação de "Ulisses" pela editora que administrava com o marido. Num diário datado de 1922, ela descreve o romance como "analfabeto" e "malcriado" e Joyce como um "operário autodidata" que "todos sabemos quão torturantes podem ser, quão egoístas, insistentes, brutos, agressivos, e em última instância repugnantes".

Apesar das críticas de uma das autoras carimbadas de listas de leitura feministas, "Ulisses" se distancia da carga do homem branco europeu em mais de um momento. "É um livro de homens que passa por uma reversão absoluta no final e entrega a palavra final a uma mulher de forma que muda completamente o livro", diz Galindo, em referência ao famoso monólogo final da mulher do Odisseu dublinense, Molly Bloom.

"Leopold Bloom anda pela cidade imaginando que mulheres não têm banheiros públicos e os homens têm. Ele sente dor de cabeça quando a mulher dele está menstruada, fica grávido num episódio de alucinação." Joyce foi um ativista do direito ao sufrágio feminino.

A atualidade do romance não se restringe a persistência dos problemas que ele retrata. Joyce chegou a brincar que seus enigmas deixariam os acadêmicos ocupados por séculos e que esse era o caminho para a imortalidade de uma obra. De fato, até hoje são produzidas teses e mais teses e discussões que ultrapassam o perímetro das universidades e chegam às redes sociais.

Sem falar que a obra de Joyce —que inclui ainda o livro de contos "Dublinenses" e o romance "Retrato de um Artista Quando Jovem", espécies de "prequels" de "Ulisses", além de "Finnegans Wake", seu último romance, considerado ainda mais difícil do que o aniversariante de agora— serviram de inspiração para vários autores brasileiros.

Guimarães Rosa, famoso pelos neologismos que lembram aglutinações joyceanas –o irlandês detestava hífens– e pelo referencial mítico, foi um deles. Clarice Lispector também bebeu do primeiro romance de Joyce o título da sua estreia, "Perto do Coração Selvagem".

As edições comemorativas, seja a revisão da primeira versão do livro em português, feita por Antonio Houaiss nos anos 1960, lançada no ano passado pela Civilização Brasileira, ou a versão expandida da Companhia das Letras, publicada em janeiro com tradução revisitada e artigos e resenhas anexados, continuam a agitar a crítica e o mercado editorial.

Joyce está longe de se esgotar. Como reiterou Caetano Galindo, "você só está pronto para ler 'Ulisses' quando você terminou 'Ulisses'".

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