Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

Em romance 'Boogie-Woogie', Boris Vian criou o 'pianoquetel'

Da sinestesia entre melodia e sabor temos a união do prazer com o prazer

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Tem aniversários que merecem um grito de ulalá todo ano, seguido de drinques expansivos. Como o de Boris Vian, nascido neste 10 de março, há 103 anos. Quando morreu, aos 39, houve uma queda inaudita dos níveis de energia criativa do planeta.

Trompetista, compositor, cantor, engenheiro, patafísico, dramaturgo, agitador cultural, crítico musical, pintor, romancista, era um furacão de testa alta e sorriso triste que reinava no bairro boêmio de Saint-Germain-des-Prés, em Paris. Adepto de salutares bagunças, "traduzia" livros eróticos e violentos que ele mesmo escrevia e assinava com pseudônimo. Primeiro dessa leva noir, "J'irai Cracher sur Vos Tombes", ou "Vou Cuspir em Suas Tumbas", foi o maior sucesso literário de 1947, causando furor e escândalo na mesma medida. Processado e ameaçado de prisão, Vian teve de provar que ele não era seu pseudônimo, invertendo o célebre julgamento de Flaubert.

Boris Vian no programa de TV 'A la recherche du jazz' - Philippe Bataillon/Ina via AFP

Entre as quase 500 canções que escreveu em cerca de 15 anos está o hino pacifista "Le Déserteur" (que também sofreu censura) e "Je Bois" (Eu Bebo), cuja letra é de sumo interesse para estudos lírico-etílicos. A filosofia é simples, mas eficaz: "Bebo sistematicamente para não dizer a mim mesmo que devo parar de beber". Prova de que a sofrência já era universal, o pessimista também "bebe sistematicamente para esquecer os amigos de sua mulher".

Mas Vian, ele mesmo, bebia por diversão —talvez sistematicamente. Criou até uma máquina para isso em que juntava a tão querida música, combustível das suas noitadas no cabaré Tabou, e elixires de todas as cores e sabores. É o "pianoquetel", assim descrito pelo personagem Colin, em seu romance "A Espuma dos Dias": "A cada nota faço corresponder uma bebida, um licor ou um aromatizante". Ou seja, o fremir das teclas funciona como as mãos de um bartender.

Não fica claro se, ao tocar clássicos como Bach ou "La Vie en Rose", o coquetel resultante seja também um clássico —um dry martini, por exemplo. Ou se, dedilhada uma melodia de Noel Rosa, saia pronta uma caipirinha gelada.

Mas a descrição continua, na ótima tradução de Paulo Werneck (a edição brasileira é da saudosa Cosac & Naify): "E, de acordo com a duração da peça, podemos, se quisermos, fazer variar o valor da dose (...) para obter uma bebida que leve em conta todas as harmonias".

Colin ajusta o pianoquetel para taças de 200 ml e seu amigo Chick senta-se na banqueta para tocar/coquetelar. No filme de mesmo nome, dirigido por Michel Gondry, a canção é "Caravan", de Duke Ellington, outro dos amigos geniais no panteão de Vian.

"Ao fim da peça, uma parte do painel da frente se abriu num golpe seco e apareceu uma fileira de vidros. Dois deles estavam cheios até a boca de uma mistura deliciosa."

Da sinestesia entre melodia e sabor, harmonia e dose etílica, temos a união do prazer com o prazer. Nada mais justo e necessário. A ideia se espalhou pela França e diferentes pianoquetéis foram de fato construídos —um dos afinadores da engenhoca entrou em coma alcoólico, mas sobreviveu.

Vian deixou algumas receitas —infelizmente não em partituras. A que segue é homenagem ao seu quadrado festivo, cujos habitantes teriam "uma capacidade estomacal quase ilimitada no que se refere aos líquidos.". Como ele não especifica bem as medidas, tive de improvisar a música.


LE SAINT-GERMAIN

60 ml de vodca

50 ml de vermute seco

10 ml de Cointreau

Mexa os ingredientes com gelo e coe para uma taça coupê gelada.

Erramos: o texto foi alterado

Versão inicial deste texto dizia que Boris Vian nasceu há 123 anos. O escritor nasceu em 10 de março de 1920, há 103 anos portanto.

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