As folhas amarelas terão de esperar. O outono em Albany, na Geórgia, sudoeste dos EUA, ainda está no camarim, procurando o figurino adequado pros tempos que queimam. Quando a cortina subir, no dia 23, haverá sol e temperatura acima dos 30º.
A entrada em cena do outono —e da nossa primavera— coincide com o nascimento de Ray Charles, nessa mesma Albany, há 93 anos. Embora marcado pelo clima da melancolia, sua voz vinha da parte quente do espectro de cores.
Daí que mesclava as estações dos sentimentos, tornando-os mais complexos. "Georgia on my Mind", seu maior sucesso, é um exemplo. A letra fala da saudade do estado natal, mas permite outras interpretações —uma história de amor?
Leonard Cohen, outro aniversariante —89 anos neste 21—, ouvia Ray Charles sem parar, enquanto batia à máquina sob o sol da ilha de Hydra, na Grécia. Até o LP "The Genius Sings the Blues" empenar. (Hoje teria derretido).
Tanto calor podia ser amenizado pelas drinking songs —canções "para beber", cujos primeiros registros datam do século 11 e se espalharam por diversos países, entre eles a terra onde o autor de "Hallelujah" foi morar, a partir de 1960.
Foi nesse ano que Ray gravou "Georgia on my Mind" e uma divertida "One Mint Julep", bom exemplo de drinking song. É a regravação instrumental de um sucesso de doo-wop. A letra conta como um inofensivo mint julep, drink clássico do sul estadunidense, criou problemas cômicos ao narrador.
Um ano depois, em 1961, Charles gravaria um álbum com a cantora Betty Carter. Seria excelente, não fossem os arranjos espalhafatosos. Mas as duas vozes — e a química— salvam qualquer naufrágio. Entre os achados, está "Cocktails for Two".
Fruto da era das big bands, a canção surgiu no filme "Murder at the Vanities" (1934), considerado, com certo exagero, o "musical mais indecente de todos os tempos". Coincidência ou não, logo depois o moralizante Código Hays ficou mais rigoroso, passando a censurar as mais mínimas cenas de nudez e outras barbaridades no cinema.
Alheia a esses movimentos retrógrados, a canção —também uma drinking song— celebra o fim, em dezembro de 1933, de outro código moralizante: a Lei Seca. Gravada ainda por Duke Ellington e Bing Crosby, ela começa: "Ah, que delícia/ ter o direito/ de voltar a dar risadas/ sem se esconder/ e respeitavelmente beber/ como pessoas civilizadas".
Mais adiante, os dois num rendez-vous, coquetéis nas taças, as mãos se tocando sob a serviette: "Minha cabeça pode estar girando/ mas meu coração é obediente/ um beijo embriagante/ como principal ingrediente".
O que estariam bebendo? Talvez mint juleps. Talvez algo mais forte —pode-se especular infinitamente. Que tal um amaretto sour? Ray e Betty fazem que sim com a cabeça e retomam a conversa.
Da extensa família dos sours, esse coquetel surgiu mais ou menos na época da canção. O livro de 1935, "Mr. Boston Official Bartender's Guide", traz a receita original, que cruzou décadas intocada até que Jeffrey Morgenthaler decidiu acrescentar bourbon e clara de ovo.
O que era muito doce ganhou equilíbrio perfeito. "Toda tarde às cinco/ que bom estarmos vivos/ deixando que a sorte decida/ o que virá depois:/ sempre coquetéis pra dois".
AMARETTO SOUR
45 ml de Amaretto
30 ml de bourbon
22,5 ml de suco de limão siciliano
7,5 ml de xarope de açúcar
Clara de ovo
Bata os ingredientes a seco e depois repita a operação com gelo. Coe para um copo old-fashioned com gelo. Como guarnição, use um twist de limão siciliano e uma cereja marrasquino.
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