Mahershalalhashbaz Ali. Essa curiosa combinação de nome hebraico e sobrenome islâmico, um enorme e outro mínimo, aparece no passaporte do vencedor de dois Oscar. Vem da Bíblia. É o nome de um dos filhos do profeta Isaías. Seu significado não é dos mais edificantes. Tem a ver com pilhagem, saque.
O ator fez bem em encurtar para Mahershala. Quando ganhou o Globo de Ouro por "Green Book", foi devidamente batizado - com vodca. Aconteceu nos bastidores. Como um padre dionisíaco, Bill Murray foi espargindo o conteúdo de seu cálice na cabeça dos colegas, entre eles Ali e seu parceiro no filme, Viggo Mortensen.
Muçulmano desde os vinte anos, seguidor de uma comunidade mais tolerante, considerada herética por grupos ortodoxos, Mahershala não bebe. Mas entrou na brincadeira. "É o Bill Murray, pô!". Um perfeito cavalheiro. Por sorte, não estavam no "Feitiço do Tempo".
Em "O Mundo Depois de Nós", Ali (George) deixa os preceitos religiosos dos Ahmadi, surgidos no Punjabi, entre a Índia e Paquistão, e, em nome da arte cinematográfica, prepara um coquetel numa bela casa de férias. Diz que é seu drinque exclusivo, e o oferece para Ethan Hawke (Clay). Desconfiada, a misantropa Julia Roberts (Amanda) pergunta o que tem dentro. Para nossa decepção, ela é interrompida pelo marido, que aprova a mistura com entusiasmo.
Lá fora o mundo está cada vez mais sombrio. Cervos e flamingos fazem assembleias, aviões caem, navios encalham e carros autoguiados entram num engavetamento interminável. Não é uma simples tempestade que se avizinha, mas talvez o fim. O caos espelha um inferno sartreano de conflitos pessoais e raciais. Em meio a tudo isso, o coquetel tem o sabor dos vinhos tomados durante a Peste: é o prazer dos que fazem a última dança.
Ricos, os personagens poderiam estar no livro de Isaías, que criticava a concentração de renda: "Ai dos que juntam casa com casa, emendam campo a campo até que não sobre mais espaço e sejam os únicos a habitarem no meio do país". Não é exatamente o caso deles, mas a descrição se ajusta. Mais adiante, o pai de Mahershalalhashbaz também diz, numa toada anti-Murray: "Ai dos que são fortes para beber vinho e dos que são valentes para misturar bebidas."
Talvez seja preciso entender o contexto, mas adiemos o apocalipse, nós que somos valentes. Pois urge responder a pergunta: afinal, quais os ingredientes usados pelo homem misterioso de fraque e fala mansa, que aparece do nada? Talvez seja, como o nome do ator, uma combinação inusitada. Talvez seja a chave de tudo, a poção da clarividência.
Mas naquele mundo em que as comunicações foram cortadas, em que o desespero diante das telas mudas escancara uma dependência sem volta, é impossível ler os rótulos das garrafas que ele vai manuseando, como mágico. A cor, um âmbar avermelhado, lembra o Campari. Única pista.
Poderia ser uma das muitas variações do negroni, o triângulo perfeito dos balcões. Como o rosita, feito com tequila em vez de gim, criação de Gaz Regan, autor de inúmeros livros de coquetelaria. Seria uma homenagem à pequena Rosie, filha do casal Clay-Amanda, a única que parece entender realmente o que está acontecendo.
ROSITA
- 45 ml de tequila branca
- 15 ml de Campari
- 15 ml de vermute seco
- 15 ml de vermute doce
- Um lance de Angostura
- Sirva num copo old-fashioned com gelo e mexa. Acrescente uma casca de limão siciliano.
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