Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Aconteceu no Canadá

Sentença que inocentou jovem e condenou policial precisa ser lida por Doria e comandantes da PM paulista

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Bela Kosoian reside em Laval, na Grande Montréal, não em Paraisópolis. Dias atrás, a Corte Suprema do Canadá mandou que lhe paguem C$ 20 mil (cerca de R$ 63 mil), cotizados entre a prefeitura da cidade, a empresa de transporte e um policial arbitrário. A sentença precisa ser lida por João Doria e os comandantes da PM paulista.

O caso ocorreu em 2009. Bela foi multada, algemada e presa numa estação de metrô por não obedecer à ordem de um policial de segurar o corrimão da escada rolante e, em seguida, recusar-se a exibir um documento de identidade. Dois tribunais rejeitaram sua ação por danos morais. Ela apelou à instância superior e triunfou. A decisão é um marco civilizatório.

Os réus se defenderam mostrando fotos da placa que estimula o uso do corrimão. Explicaram, ainda, o treinamento oferecido aos policiais, no qual passa-se a impressão de que a advertência de segurança tem força legal. Não colou. Os juízes escreveram que “um policial sensato” não interpretaria a desobediência como uma violação da lei e sustentaram o direito de Bela de desobedecer a uma “ordem ilegal”. O trecho crucial da sentença deveria ser emoldurado e pendurado nas delegacias e quartéis das polícias brasileiras:

“Para conduzir sua missão de proteger a paz, a ordem e a segurança pública, policiais são chamados a limitar os direitos e liberdades dos cidadãos usando o poder coercitivo do Estado. Porque é inegável o risco de abusos, é importante que sempre exista um fundamento legal para as ações adotadas pelos policiais; na ausência de tal justificativa, as condutas deles são ilegais e não podem ser toleradas”.

A criminosa ofensiva policial no baile funk de Paraisópolis deve ser avaliada sobre o pano de fundo do episódio do metrô de Laval. As investigações talvez contem a história inteira. Mas, antes delas, qualquer pessoa cuja alma não tenha sido destroçada pelo preconceito sabe que “policiais sensatos” renunciariam a uma perseguição em meio à multidão reunida na rua. 

Doria não aguardou as investigações para defender a ação em Paraisópolis. Das suas palavras sórdidas já se extrai a conclusão de que a missão da PM era, de fato, reprimir o baile —e que isso “vai continuar”. No Canadá, o policial pagou apenas um terço da indenização de Bela.

As perguntas precisam subir a ladeira que conduz ao comando da PM e ao governador. Que tipo de treinamento recebe a PM paulista? Qual é a bússola política que mostra o rumo aos responsáveis pela segurança pública? Qual é a diferença —prática, não retórica— entre Doria e Witzel?

O governador lamentou as mortes, etc. e tal, mas prometeu “manter o protocolo”. No primeiro semestre, a polícia foi responsável por um terço das mortes violentas no estado. Diante desse número, Doria declarou que não existe obrigatoriedade para a redução de vítimas em intervenções policiais. O “protocolo” é matar à vontade —com a condição de que os alvos não incluam frequentadores do Iguatemi. O “protocolo”, além de tudo, afronta os “policiais sensatos”, rebaixando a polícia ao estatuto de milícia. 

“As condutas deles são ilegais e não podem ser toleradas”. Os juízes canadenses referiram-se aos policiais insensatos. Por aqui, a frase aplica-se aos “homens de bem” —moralistas, profundamente religiosos, defensores da família— sentados nos palácios do Planalto, dos Bandeirantes e da Guanabara. O programa deles não é a redução da letalidade. É o “excludente de ilicitude” de Moro, um verniz legal para a “lei do abate”.

Acima, dei de barato que ocorreu mesmo a perseguição alegada pela PM. As testemunhas dizem coisa diferente. Moradores da favela contam histórias incontáveis de ações policiais imotivadas e violentas. A canadense Bela não mora em Paraisópolis. Lá, o que seria dela se não obedecesse a uma ordem ilegal ou recusasse identificar-se a um policial?

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