Nabil Bonduki

Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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Ao pagar morador para deixar áreas de risco, Nunes reedita a compra de ratos para combater a peste

Medidas estruturais precisam ser implementadas para enfrentar as causas que geram as áreas de risco

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Os eventos extremos, cada vez mais intensos e frequentes, geram tragédias humanas, como vimos na semana passada na Região Metropolitana de São Paulo, que podem se repetir a qualquer momento.

Em vez de enfrentar estruturalmente a questão fundiária e a falta de moradias para as famílias de baixa renda, que geram as áreas de risco, a prefeitura de São Paulo está propondo uma "solução" contraproducente: pagar para o morador abandonar o barraco onde vive, erguido em local impróprio para o assentamento humano.

Segundo o prefeito Ricardo Nunes, está pronto para ser enviado à Câmara Municipal um projeto de lei autorizando o município a pagar indenização para moradores que deixarem suas casas em locais considerados de alto risco.

Charge "Seu Amaral, líder no comércio de ratos, teve problemas com a polícia", durante a epidemia de peste bubônica, no Rio, no início do século 20
Charge "Seu Amaral, líder no comércio de ratos, teve problemas com a polícia", durante a epidemia de peste bubônica, no Rio, no início do século 20 - Reprodução

Essa suposta "solução", que parece desconhecer as causas das áreas de risco, terá o mesmo efeito que a compra de ratos para combater a peste bubônica, proposta pelo sanitarista Oswaldo Cruz, no começo do século passado: multiplicar o problema ao invés de enfrentá-lo.

Em 1903, a tese de que a peste bubônica (peste negra) era transmitida pela pulga de rato se tornou predominante no meio médico brasileiro, como mostra a dissertação de Matheus Duarte da Silva, defendida na FFLCH-USP, "O baile dos ratos: a construção sociotécnica da peste bubônica no Rio de Janeiro (1897-1906)".

Em decorrência, a Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), dirigida por Cruz, promoveu campanha de desratização no Rio de Janeiro, complementarmente a vacinar os moradores das áreas infectadas, obrigar a notificação dos doentes para garantir seu isolamento e tratá-los com o soro fabricado no Instituto Soroterápico Federal.

Os funcionários destacados para exterminar os ratos da cidade eram obrigados a apresentar pelo menos 150 ratos por mês, sob risco de demissão. Os que conseguissem ultrapassar a cota recebiam uma recompensa de trezentos réis por animal abatido.

Charge representa Oswaldo Cruz e suas campanhas para combater a peste bubônica
Charge representa Oswaldo Cruz e suas campanhas para combater a peste bubônica - Acervo Fiocruz

O DGSP instituiu ainda a compra de ratos, pagando duzentos réis para cada animal entregue. Qualquer um podia vender ratos para o governo, o que fez surgir na cidade uma nova atividade informal: os ratoeiros.

Eles percorriam a cidade comprando ratos a baixo preço para depois revendê-los. Outros se dedicaram a criar roedores em casa ou a importá-los de outras cidades. O ofício virou um negócio, eternizado em charges e em marchinhas de carnaval.

Ao invés de serem exterminados, os ratos se multiplicaram. De acordo com Silva, em 1903, foram incinerados 24 mil ratos, número que cresceu para 295 mil em 1904 e alcançou 471 mil em 1907. Em cinco anos, foram incinerados 1,6 milhão de ratos! Mas eles não pararam de infestar os esgotos, as estalagens e os cortiços da capital.

Para sorte da saúde pública, as medidas estruturais tomadas pelo sanitarista, como a vacinação, o isolamento e tratamento dos doentes, geraram melhores resultados e a peste recuou no Rio de Janeiro. A desratização era necessária; o erro foi transformá-la em um negócio.

É compreensível que Oswaldo Cruz, desconhecendo os expedientes de sobrevivência da população pobre nos primórdios da urbanização brasileira, pudesse ser ingênuo e acreditar que comprar ratos fosse uma alternativa.

O que surpreende é, 120 anos depois, a maior cidade brasileira não ter uma estratégia para enfrentar as causas que geram as áreas de risco e apelar para uma solução de curto prazo que poderá promover uma reprodução ampliada do problema.

Segundo Nunes "é uma indenização, uma forma ágil para os casos de remoção de famílias que têm muita resistência em receber auxílio-aluguel". A indenização levará em conta o metro quadrado e o material usado na construção do imóvel. Ele citou uma planilha usada na favela de Paraisópolis, com valores entre R$ 7.000 a R$ 40 mil.

Com esse dinheiro, não se encontrará uma moradia em condições adequadas em São Paulo. Nossa experiência em gestão habitacional mostra que, sem alternativas, o morador voltará a ocupar outra área de risco, reproduzindo o problema que se quer eliminar. A "solução" tende, ainda, a inflacionar o mercado informal em assentamentos precários.

A medida é paliativa e contraproducente, sangrando os cofres públicos. De acordo com a Secretaria de Segurança Urbana, São Paulo tem, atualmente, 175,5 mil moradias localizadas em 494 áreas de perigo iminente de deslizamentos e solapamentos de margens de córregos, das quais 11,6 mil estão em áreas de altíssimo risco.

Embora previsto no Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014, a prefeitura não elaborou o Plano Municipal de Gerenciamento de Riscos, que deveria traçar uma estratégia para enfrentar o problema. Desde 2019, a Promotoria de Habitação e Urbanismo do Ministério Público vem intimando a gestão a formulá-lo.

São Paulo também não tem um plano de habitação, embora Haddad tenha enviado um projeto de lei em 2016, que dorme intocado no legislativo. Sem planos e ações concretas para efetivá-los, retirar famílias de áreas de risco sem ter moradia definitiva é como enxugar gelo.

Pagar para as pessoas deixarem suas casas pode aliviar momentaneamente a consciência dos gestores, mas gerará um mercado informal em áreas de risco, agravado pelo fato do crime organizado ter transformado a ocupação de terras em negócio.

O enfrentamento do problema exige tornar as cidades mais resilientes, aptas para agirem rapidamente diante de eventos extremos.

Ações efetivas requerem medidas preventivas, com informações e treinamento para população, tecnologias para acelerar a ação em casos de emergência e locais preparados para receber provisoriamente as famílias em risco. A experiência internacional é vasta nesse tipo de prevenção.

O Brasil conta com modernos sistemas de previsão do clima. O Cemadem (Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais), criado pelo governo federal em 2011, emite relatórios e alertas que permitem se antecipar às tempestades e atender as famílias antes das tragédias.

Por outro lado, medidas estruturais precisam ser implementadas para enfrentar as causas que geram as áreas de risco.

É necessário implementar a política fundiária prevista no PDE para combater a especulação com imóveis ociosos e subutilizados e ampliar a oferta de terras adequadas para a produção habitacional, e retomar a produção em massa de habitação adequada para a população de baixa renda, abandonada pelos três níveis de governo.

Bolsonaro (PL) extinguiu a Faixa 1, quando trocou o Minha Casa Minha Vida pela Casa Verde Amarela. Doria extinguiu a CDHU e, como a prefeitura de São Paulo, insiste em priorizar a PPP habitacional, que utiliza terrenos públicos, mas não atende majoritariamente as famílias que mais precisam do apoio do poder público.

Pouco pode se esperar das empobrecidas prefeituras da região metropolitana, como Franco da Rocha, onde ocorreram dezenas de mortes na semana passada. Provavelmente será para lá, onde os barracos em áreas de risco são mais baratos, que irão se dirigir as famílias que receberem a indenização que Nunes pretende pagar. Como ratos, as áreas de risco irão se reproduzir se nada mais for feito.

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