Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Quando se escreve e é mulher

Exportar o pensamento feminista negro brasileiro é revolucionário

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De malas prontas para a França. Assim, começo a escrever essa coluna com um sentimento de alegria, animada para começar essa viagem. Passarei duas semanas na companhia de minha querida amiga e brilhante intelectual Joice Berth, urbanista e autora de “Empoderamento”, o terceiro título da coleção Feminismos Plurais, iniciativa editorial independente que tenho a honra de coordenar. Assim como ocorreu com “Lugar de Fala” e “Quem Tem Medo do Feminismo Negro?”, ambos de minha autoria, o livro de Joice foi traduzido e publicado em francês pela Anacaona, nome adotado por Paula, nossa editora. 

Nascida na França, ela tomou a iniciativa de aprender português e publicar suas companheiras de diáspora afro-brasileiras. Até o momento, publicou no país Conceição Evaristo, ​Jarid Arraes, Joice Berth e eu. Iniciativas que visam exportar o que mulheres negras brasileiras têm escrito devem ser celebradas, uma vez que o próprio ambiente nacional acadêmico e literário costuma ser eurocentrado.

Ilustração de menina negra vendo revista com desenho de punho negro fechado e símbolo do feminino.
Linoca Souza/Folhapress

Se já é incomum para grupos sociais no poder experimentarem uma turnê de lançamento de livros de não ficção na França, imagine então para aquele grupo que, nos últimos 70 anos, não representou 5% dos livros publicados em grandes editoras. Some a isso todo o boicote e ataque que uma mulher altiva sofre por ousar escrever, posicionar-se publicamente e discordar dos detentores do poder. 

Sendo uma mulher altiva na sociedade patriarcal francesa, Beauvoir percebeu isso. Em um documentário, a filósofa afirma: “A minha história política é dos meus livros, dos meus sucessos, e também dos ataques de que fui alvo. Na França, quando se escreve e se é mulher, é o mesmo que entregar um pau para vos baterem (...) Seja como for, ao voltar-me ao passado, não invejo ninguém. Levei toda a minha juventude para me lixar para a opinião dos outros”.

Intersecções de opressão posicionam grupos sociais em lugares de existência específicos. Dialogando com Beauvoir, poderíamos dizer que se a mulher for negra, então, os ataques se elevam pelo incômodo com o desajuste da estrutura racista.

Me lembro da primeira vez que fui à França lançar meu livro. Na ida, quando estava no avião, minhas pernas tremiam, suava frio, não conseguia dormir. Era minha primeira vez lançando um livro no exterior, não tinha tido contato com o público francófono e tinha certeza de que, se desse errado por algum motivo, muitos a serviço da estrutura racista aproveitariam a oportunidade para atingir uma mulher negra que estava em posição de destaque.

Cada qual o seu caso, é comum uma pessoa negra passar por isso quando desperta olhares. A solidão institucional é algo muito cruel e funciona enquanto estrutura, de forma a impedir qualquer ascendência social. Aquele tour, apesar da ansiedade, foi uma experiência incrível. Desde o primeiro evento fui muito bem recebida e tive a atenção do público que tem se disposto mais a pensar as dinâmicas raciais e o colonialismo. 

Claro que sou uma estrangeira, ainda preciso me dedicar muito em estudos e convívio para entender a realidade concreta e crítica naquele país. Contudo, dessas minhas primeiras idas, conversando com gestores públicos, com o público dos eventos e colegas em geral, percebe-se a confusão no debate racial, sobretudo pelo enraizado costume de não se falar em raça.

Em geral, formadores de opinião e grupos dominantes, inclusive no campo progressista, pactuaram até os dias atuais com o pensamento vindo da Segunda Guerra, quando a crítica à crença na raça pura ariana teve como consequência a associação do debate sobre raça à eugenia. Ou seja, seriam todos somente franceses.

Ora, estamos a falar de coisas diferentes aqui, respondi quando me foi feita uma pergunta nesse sentido. É evidente que em um sentido biológico, temos dois pulmões, um fígado, nariz, boca, etc., não havendo sentido se falar em raça.

Somos todos da espécie humana. Entretanto, estamos a refutar o determinismo biológico, isto é, o uso da biologia para justificação das desigualdades construídas socialmente. Raça no sentido sociológico. Nos interessa discutir como historicamente grupos foram subalternizados para que outros desfrutassem de privilégios, estabelecendo a mulher negra na base e o homem branco no topo, como feministas negras brasileiras dizem há muito tempo. 

Nesse sentido, exportar o pensamento feminista negro brasileiro é revolucionário e traz o aprofundamento desse debate racial, algo fundamental. Me inspirando em Beauvoir, que apesar de todos os ataques, foi corajosa ao pensar em uma filosofia da condição feminina, estamos seguindo passos que vieram de longe, buscando uma mudança de paradigma. Até mais, Brasil.

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