Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro
Descrição de chapéu Todas Prêmio Nobel

Maryse Condé

A velha feiticeira se despediu desse plano e se juntou às ancestrais

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"Porque tanto viva quanto morta, visível quanto invisível, eu continuo tratando e curando. Mas, sobretudo, eu me atribuí outra tarefa [...]. Alimentar sonhos de liberdade. De vitória. Não tendo uma revolta que eu não tenha feito nascer." ("Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salem")

A velha feiticeira se despediu desse plano e se juntou às ancestrais. Maryse Condé, mulher negra caribenha, dileta filha da ilha de Guadalupe, fez a passagem aos 90 anos de uma vida que está eternizada no hall de gigantes da literatura mundial.

Palavras não chegarão à altura do que Maryse representou. No caldeirão da magia caribenha, reinventou formas de contar histórias em livros que alimentam leitoras e leitores apaixonados por histórias fantásticas, independentes de proselitismos, ao mesmo tempo em que são rebeldes. São textos que fogem ao essencialismo e abraçam a honestidade, e, talvez por isso, seja uma das mais consagradas escritoras da literatura em francês no último século.

Vamos falar disso mais à frente, mas ler seus livros tem sido uma experiência recente na minha vida e um verdadeiro presente para a alma. Condé foi uma das mais refinadas artistas na arte da ironia, manuseando essa ferramenta de argumentação decisiva como quem desarma e constrange num simples olhar.

Sua história de vida começa na região caribenha que faz parte da "França ultramarina", como são conhecidos os territórios sob domínio francês que descendem diretamente da colonização. Na cidade de Pointe-à-Pitre, segunda maior da ilha de Guadalupe, ela nasceu caçula prodígia de oito irmãos.

Destacou-se desde sempre e, ainda jovem, recebeu uma bolsa para estudar em Paris, onde descobriu o que significava ser negra e caribenha aos olhos dos moradores da cidade. Crítica, Condé se engajou no ativismo político anticolonial, quando então emigrou para a Guiné, na África, onde viveu por 12 anos, até retornar nos anos 1970 a Paris e obter o título de doutora pela Universidade Sorbonne em literatura comparada.

A ilustração de fundo amarelo tem a imagem da escritora Maryse Condé. Ela é uma mulher negra, com cabelos grisalhos, usa uma camisa cinza escuro, um terno preto, um colar e brincos dourados.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 4.abr.24 - Aline Bispo

Conviveu com grandes de seu tempo e se inspirou em obras de Emily Brontë, Aimé Cesaire e Franz Fanon –este também caribenho. Questionou o colonialismo, a escravidão, a sexualidade, o racismo e a religião nos romances que começaram a ser publicados quando chegava aos 40 anos de idade.

A recepção do público às suas obras foi tanto desconcertante quanto magnética, fazendo sucesso com seu estilo único. Com o passar dos anos, Maryse passou a colecionar prêmios literários, chegando ao ápice de receber o "Nobel alternativo", como ficou conhecida a única edição da premiação dissidente do Nobel, quando as denúncias do movimento #MeToo chegaram ao comitê de jurados da academia sueca. Até nisso Maryse Condé foi única.

Sua carreira acadêmica foi igualmente notável. Foi professora emérita na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, e lecionou em diversos programas acadêmicos ao redor do mundo.

Ao passo que em outros idiomas sempre foi uma das autoras mais procuradas em livrarias, o público brasileiro tem encontrado traduções recentes, sendo que ainda resta uma boa parte de seu repertório para ser lançado.

Nesse sentido, Condé teve três livros publicados nos últimos anos. Um deles foi o mais tocante na minha relação com a autora. "Eu, Tituba: Bruxa Negra de Salem" foi a primeira obra que li sua e, ainda hoje, é inesquecível o fascínio que tive ao ler a história, que une fatos e ficção, tão maravilhosamente descrita pelas palavras mágicas de Maryse.

À coluna a editora Lívia Vianna, do Grupo Editorial Record, que tem publicado as obras e disseminado o trabalho de Condé no Brasil, afirma que "essa quantidade de títulos já lançados e também a lançar é diretamente proporcional ao espaço que temos certeza que Maryse Condé deve ocupar nas prateleiras dos leitores e leitoras brasileiras".

E complementa: "Ter no catálogo tantas obras de uma autora da grandeza de Condé é mais do que uma escolha editorial, é uma missão, um chamado, porque há na obra dela ensinamentos que vão muito além da literatura".

Neste ano, tive a honra de escrever o prefácio do livro "O Fabuloso Destino de Ivan e Ivana", um dos últimos escritos pela autora, na onda dos ataques ao jornal Charlie Hebdo, e que nos tempos atuais se atualizam e imortalizam, numa dialética complexa que só a literatura de excelência é capaz de produzir. Foi uma honra poder escrever o prefácio e celebrar essa grande escritora em vida.

Como a autora disse em uma entrevista, viver é ultrapassar barreiras. E ela as ultrapassou, nos deixando um legado de pioneirismo, vanguarda e excelência com as palavras.

Obrigada, Maryse Condé.

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